quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Noite de chuva

O ar condicionado e o corpo repousado em uma cama que não era de ninguém, e aquele travesseiro alto demais, que demasiada também era sua rigidez. Um chá antes de dormir e o resultado óbvio da coisa toda, nada do sono vir. Alguém dormia pesadamente no leito ao lado, mas como? Amaldiçoei o chá, a cama, o travesseiro e a baratinha egoista que possuia o quarto todo só pra ela. Li uma vez uma reclamação de que o veneno não funcionara e agora havia uma infestação, dessas assim, pequenininhas. "É porque essa espécie, veja bem, possui menos contato com o chão, a culpa não é nossa, nosso produto funciona, está comprovado." A culpa não é de ninguém, nem pelo colchão de molas, nem pelo travesseiro quadrado, nem pelo ar condicionado gelando até a garganta doer. Dormi.

Agora eu já era uma moça crescida e tinha um apartamentinho de tres níveis, todo mobiliado do meu jeito. As cadeirinhas de madeira escura curvadas à vapor contrastando com paredes amarelas de iluminação calorosa, tão aconchegante.Uns sofás estampados de verde com detalhes dourados e mais da minha madeira que curvava feito borracha, e um armário igual se vê nesses filmes de fora que é só uma porta dentro da parede. Até tapetes escuros e peludos tinha nesse meu lugarzinho, e eu que odeio tapetes.

O que acontecia é que toda a noite, os móveis mudavam de lugar, e só se via isso na manhã seguinte. Namorava alguém que as vezes viajava me deixando sozinha, e quando voltava tudo estava diferente. Acordei em uma noite para buscar um copo de água na cozinha e lá estava o outro, o antigo, o passado, deslocando todas as peças, mas assim, transparente. Achei aquilo tudo engraçadíssimo e sentamos no sofá para conversar enquanto chovia lá fora. Agora já era um chocolate quente que estava em uma xícara em minhas mãos e na dele, e riamos feito os velhos tempos, enquanto eu achava o máximo alguém fazer isso de se atravessar paredes. Ele estava um pouco tímido e me ocorreu perguntar se era só comigo que acontecia isso, ele hesitou e partiu.

Meu namorado chegou na manhã seguinte e tornou-se furioso quando contei para ele do fato ocorrido. Mas se estavamos tão felizes rindo e nos divertindo apenas, sentados no sofá que imitava art nouveau, o que há de errado então? Começou a quebrar toda minha mobília, meticulosamente escolhida e que eu levara tanto tempo para comprar, peça por peça. Então abriu aquela porta do armário dos filmes americanos, e lá estava o outro, esperando a noite chegar. Expressou-se triste e um sentimento agudo de tristeza me tomou também, agora não haviam mais cadeiras nem mesas para movimentar. Despediu-se, fechamos o armário e quando abri novamente em minha tola esperança, havia desaparecido.

Agora eu estava em uma clínica odontológica e já haviam retirado um de meus dentes do juízo. Faltava outro, mas não tinha só um pra ser tirado? E eu não iria viajar no dia seguinte? Parem! Isso tudo está errado, não era pra ser agora! Gritei desesperada, mas só ecos repercutiram dentro de mim. Alguém leu uma notícia no jornal contando de um jovem que havia se acidentado com sua moto. E morrido? Mas não quiseram me contar. Me lembrei do sonho que tive e de ve-lo daquele jeito, transparente, atravessando os comodos e falando tão pouco. Será que? Estremeci.

Depois eu era uma senhora louca obcecada pela conservação post mortem, e falava como uma das personagens de lygia com outra senhora. Eu reclamava dos produtos que utilizavam nos cadáveres hoje em dia, que aquilo tudo de nada adiantava, e afirmava que era preciso uma outra solução, e que por fim iria utilizar de um tanto de um iso alguma coisa, pois conservava até peças fotográficas.

O despertador soou.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Os contos etéreos sobre Melaço

Era Melaço sim, do mesmo jeito que os famosos molasses dos livros de culinária que Dona Mãe guardava com tanto carinho na biblioteca de casa, só que em portugues. Não preciso nem descreve-lo tão profundamente, porque já se pode concluir que era doce, doce e indefinido, ou seu sobrenome seria de Romã, ou de Cana-de-açucar caso houvesse alguma raça ou origem semelhante.

Beirava meus 10 anos quando o encontrei perdido, vagando por aí. "Olha mãe, nenê!". Muito severa e polida, adiantou-se ao me corrigir "Não, Cecília, é só um cachorro". Mas Melaço, para mim ao menos, nunca fora só um cachorro separado do reino dos homens da mesma forma que se usa separar calcinhas de meias na hora de lavar, Melaço era um doce, um filho, um amigo, e acima de tudo um cão boemio que custou-me muito a entender.

Quando a coisa toda começou, quero dizer, meu relacionamento com esse meu amigo, peso muito em admitir que sentia-me levemente envergonhada, especialmente quando caminhavamos juntos pelo parque. E não era só porque o desejo dele de fugir da coleira era tão intenso que praticamente me arrastava durante o percurso todo, como também a fuga era vezenquando bem sucedida, aí só me restava fingir que aquele monstrinho de dois palmos que causava desordem, em contraste aos outros cachorrinhos muito polidos e bem treinados, não era meu.

Porém, o que mais me entristece é ter plena consciencia que des de muito cedo existia um certo preconceito intrinseco no amago de meu ser, e aí lembro-me muito bem do infame dia, o qual, ao passear com Melaço e minha mãe pelas ruas, uma menininha curiosa, um pouco mais nova que eu, com seu cocker puríssimo, perguntou-me "mas que raça ele é?". Queria dizer, é um beagle, sabe? só que do tipo alemão (isso devido a sua pelagem alourada, cor de mel diluído em agua, daqueles que nunca cristalizam). A verdade é que eu queria dizer qualquer coisa, todavia, como punição, Dona mãe sempre muito justa e honesta, logo inrrompeu com descaso "é um vira-lata". Pior do que a cara da garotinha nesse momento foi só depois quando me perguntou o seu nome, "Er, hmm... , é Melaço".

"Gente doida!" Deve ter ocorrido na sua cabecinha. E foi embora superior, com seu cocker muito puro, que devia ter até pedigree, sabe?