segunda-feira, 31 de maio de 2010

Tanto Mar

Os lençóis acordaram emaranhados. Suas voluptuosas curvas se insinuavam em breves feixes de luz que permiti entrar. O dia acorda. Espreguiço-me. A alça da blusa de seda desliza sorrateira pelo meu ombro. Estremeci. A manhã está úmida, e eu. Meu corpo pesa sobre a cama. O que havia acontecido? e a lembrança do sonho me toma, enquanto o cheiro de ópio invade minhas narinas avermelhadas.
Marina dos olhos verdes que me afogavam. Sua voz latente inundando meus pensamentos imaturos, infantis. Era mais velha do que eu, um ano. Pegava-me pela mão e me ensinava a brincadeira. Os lábios delineados de cor púrpura sujos de areia. A pele salgada. O biquíni de babados.
Disse que eu não precisava da parte de cima. Ergui os braços, ela tirou. Seus braços ternamente se enlaçaram ao meu redor. Não precisa ter vergonha - ela sorriu. Fiquei contente.
Minha Marina dos cabelos acobreados deitada sobre minhas costas contando pintinhas. A coxa dourada pressionando firme contra a minha. A regata frouxa roçando seus seios maduros. Nosso suor se misturando. A pele que ardia. Acendeu um incenso de papoula e me ensinou a brincadeira.


Sei que há léguas a nos separar.

Cá estou carente.

domingo, 30 de maio de 2010

Assinado eu

E te peço,
Me perdoa,
Me desculpa.

sábado, 29 de maio de 2010

Câncer de cachorra

Ele me perguntou se era nos peitos e o que pude fazer foi simplesmente confirmar acenando tragicamente a cabeça. Como ele sabia? Disse-me que geralmente é ali, pelo menos foi isso que escutou a mãe conversando no telefone um dia desses.

Havia um resquício de sangue seco nos fundilhos da minha roupinha íntima, ele acendeu o charuto, esboçou um sorriso interno, a cartola sombreando seus olhos, cada vez mais doente, hein querida? Deu um trago, o sorriso externou-se, começou a gargalhar. Eu permaneci sentada, a xícara de café amornando entre meus dedos, tentando enxergar com dificuldade enquanto o sol trepidava nos meus olhos, queimando.

Nega, era esse o nome dela, e isso eu não vou nem esconder. Tinha um pelo azulado lustroso que descia deslumbrante por toda sua arqueada coluna, e deitava-se com as patas dianteiras cruzadas elegantemente. Podia ficar horas admirando sua beleza crua, enquanto com aqueles belos olhos caramelos me observava submissa, as patas cruzadas. Meu pai me disse que quando elas faziam isso, eram naturalmente imunes a desenvolver algum câncer ou tumor. Seriam sempre saudáveis, viveriam plenamente.

Ele parou a conversa e apontou para mim, mas que elegância! Todos me olharam. Peguei-me sentada com as pernas cruzadas e os braços cruzados pousados delicadamente sobre a coxa. Lembrei.

Sua primeira filha não teve tanta sorte. Eu me perguntava o porquê que ela os carregava tão desajeitada pelas patinhas enquanto seus caninos branquíssimos rompiam a pele tenra de seus bebes. E os enchia de bicho, lambendo-os compulsivamente na tola esperança de tirar, os vermes. Uma bicheira danada comendo os nenéns por dentro, começando pelas patinhas esgarçadas. Eu segurava a pequenininha, a menor da ninhada, na tola esperança, enquanto todo o tempo ela chorava, os olhinhos azuis que mal conseguiam ver a luz atravessando aquela membrana tênue. Comprei um negócio prateado que mataria tudo. Cheguei e o bichinho estava duro estendido no chão, as perninhas rijas enquanto os vermes refestelavam na vitória. Minha mãe me abraçou bem forte. Não chorei.
Coloquei o mesmo nome em uma nascida da segunda ninhada. O tempo era bom, seco, não precisava ficar carregando eles por aí. Uma bola de pelos ela era, coisa mais linda de se ver, e a mãe sabia, precisava ser conquistada toda vez que eu me atrevia a mexer nos seus filhotes.

-Uma mulher como você, ele devia lamber o chão que você pisa- e todas essas coisas bacanas e encorajadoras que só uma mãe sabe dizer sobre o novo cara que ela decerto não aprova. Eu disse a ela que mordesse a língua, quando ele viu a calcinha ensangüentada e sentou-se no chão, os olhos transbordando em dor. Porque ele sabia, sabia e ficou, diferente de todos os outros que apenas suspeitaram e foram embora.

Nós crescemos juntas, quero dizer, eu e a cachorra. E seus filhotes a perseguiam famintos, os dentinhos afiados querendo mascar os mamilos leitosos. O leite empedrou. As mamas rijas, depois de umas três ninhadas interrompidas por doses cavalares de injeções preventivas. Prevenir o que? A vida. E eu me desesperava na vã tentativa de ensiná-la a cruzar as patas.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Três

Então é isso? - Cecília perguntou amargamente com tamanho nojo que podia sentir transpirando de seus poros. Minha Cecília Ana com os dedos parcialmente encobertos em uma de suas luvas esquisitas que revelavam.
Não é assim Cecília...
Ela jogou o café na minha cara, não, mas sei que bem quis, e seu corpo permanentemente entorpecido havia concentrado todo o resto da vida naqueles dedinhos congelados.
Eu achei, sabe? Eu achava que eu era única. Você disse, sabe? Eu juro que escutei você dizer uma vez dessas.
Eu só queria me esconder. Entrar em baixo da mesa, sair correndo, qualquer coisa do gênero. Estava paralisado e Cecília Ana prestes a me estrangular,me dar um murro ao menos, já podia sentir o roxo esverdeado espalhando a dor latejante pela minha face.
Pude suspirar aliviado quando desviou o olhar de mim. Havia uma outra moça na mesa, e eu já havia me esquecido dessa aí. Mas na minha frente estava Cecília fitando a pobre coitada com monstruoso desprezo. Apostei que cuspiria e esperei ansioso por uma eternidade, uma eternidade muda, calada.
Cecília levantou-se bruscamente, a pose imaculada, deslizando para fora do recinto.
Reuni minhas tralhas, parti. A moça? Bem, e nem me lembro na verdade, deve ter ficado por ali mesmo, que me importa isso?

domingo, 9 de maio de 2010

ear infection

Carola devia ter seus 16 anos quando a coisa toda desandou feito maionese das temperadas. Era tempo de frio e o grunge estava super em alta, tudo muito xadrez sobreposto Cobain depressivo - mãe hoje não vou tomar banho - mas essas coisas nem se avisa, imagina se ela descobre.
Naquele tempo era difícil ser menina e ser assim, meio suja, as coisas embaixo acabavam por adquirir um cheiro todo especial de mar salgado e pescaria, se posso ser sutilmente clara o bastante, e nem existia essas facilidades da vida moderna de hoje em dia, essa tal de duchinha higiênica, esses sabonetes íntimos tecnológicos de até vinte contos, imagina só VINTE CONTOS, esses lencinhos umedecidos e frescurinhas. Lava aí com o sabão de soda, minha filha que fiz com a gordura do porco.
Mas Carola muito descolada e alternativa com as calças rasgadas e a sobreposição de 3 camisas xadrezes de padronagem diferente, ainda bem que pelo menos era inverno, e aqueles tênis desbastados, surrados sujos. Carola muito na moda Kurt com os cabelos um pouco abaixo do ombro e tão oleosos como pele de adolescentes do sexo masculino com excesso de hormônios tocando a si mesmos ao ver as revistas que escondiam vergonhosamente embaixo do colchão, descobertas somente pela irmãzinha que foi brincar de esconde-esconde um dia e aí já podem ver aonde tudo isso vai levar.

"MÃÃÃÃEEEE"

Mas o que realmente precisa ser dito é que um dia não deixaram Carola ser tão grunge quanto a sociedade exigia e a empurraram com todo seu excesso de roupas para baixo do chuveiro. Quantos dias, hein minha filha? Sem ver um pingo de água. E o cabelo escorria óleo feito hambúrguer de carne de terceira.
Ninguém dizia naquela época para colocar um algodãozinho com álcool no ouvido, que assim poderia se evitar aquela aguinha indesejada ou que cotonete não foi inventado para ser entuxado para dentro do canalzinho estreito. Em algum momento daquele demorado e tortuoso banho, alguma coisa meio azulzinha bolor de pão deve ter deslizado faceira orelha adentro, pois a reação que Carola teve ao sair do banho talvez possa ser justificada por essas condições.
A coisa coçava de endoidar, de Meu Deus minha mãe me dê esse lápis que vou enfiar aqui dentro! Nem se sabe quantos dias de algodão esverdeado, de compressas, de receitas caseiras com óleo de dendê e pimenta aquecida, nem se sabe. Porém o que é por muitas vezes repetido, acaba se tornando habito, e Carola nem lembrava mais que um dia era uma menina como todas as outras, e que as vezes tinha simplesmente preguiça de tomar banho naquela água gelada e justificava sua porca higiene através de um estilo musical da moda.
Alguns dias após a suposta recuperação, Carola, de fato ainda tornava por vezes a escutar algum ruído não muito familiar ou zumbidos deveras peculiares, confundindo seus sublimes pensamentos adolescentes, mas nada que alterasse em algum aspecto sua rotina escolar ou seu comportamento perante a robusta mãe, com o grosso avental encostado no forno preparando alegremente uma feijoada, ou até mesmo ao senhor pai debruçado sobre a mesa enquanto minuciosamente limpava as antigas carabinas.
Abandonado o cheiro de oceano, a menina, estirada na varanda dos fundos com uma de suas nostálgicas camisas surradas, verde e preta, porém agora livre de antigos micro habitantes e odores característicos, folheava com enorme falta de apreço uma revista meticulosamente desenvolvida para sua faixa etária, rosa e lilás, coisa de dar nojo, pensava enquanto seu lábio inferior enervava-se.Ouviu então chamando-a. Carola! Carola! Repetia avidamente, durante o período o qual a garota procurava aflita pela paisagem do quintal uma voz que nunca tinha escutado antes, masculina.
Sentou-se em um dos degraus, a testa franzida e as mãozinhas fechadas apoiando o queixo. Torturava seus pensamentos em alguma hipótese extraordinária para o que acabara de acontecer, um garoto me procurando? Supôs com certa insegurança, enquanto afagava carinhosamente o cachorro que acabara de se aproximar. "Barriga agora!" Carola levantou-se em um berro. Ela podia escutá-lo afinal, admirando-o sorridente enquanto o pobre animal suplicava abanando violentamente a cauda - Carinho!Carinho!
O quadro todo havia se acentuado de maneira absurda da noite para o dia. Conseguia ouvir as entranhas da senhora mãe reclamando desagradavelmente com um vocabulário chulo, enquanto comiam as sobras da janta no café da manhã - não são nada educadas, se me permite dizer - e a mãe observada intrigada a mudança atroz no comportamento de sua garotinha, ora extremamente ofendida, ora debruçada sobre a mesa gargalhando. Carola podia escutar os garotos da escola fantasiando sobre garotas curvilíneas no intervalo e garotas curvilíneas pensando em homens mais velhos. Escutava as professoras desejando que cada aluno ali presente estivesse morto, enquanto sorriam cínicas. Ouvia tímidas declarações de amor de corações amedrontados, fora do ritmo, e um sorriso esboçava-se deliciosamente nos lábios da menina.
Naquela noite a garota mal conseguiu dormir de tamanha ansiedade, rindo sozinha trancada no quarto. Imaginando as inúmeras possibilidades desse excêntrico dom adquirido. Enrolava-se nos lençóis com os dedos tensos pensando em todos os segredos e detalhezinhos escondidos que agora seriam para ela e somente ela revelados. Toda a vida alheia exposta, desnuda em seu ouvido mágico. Todas as vantagens e chantagens que poderia extrair disso. Todo o mal que poderia escutar sobre ela. Toda a raiva e angustia e dor e sofrimento. Não haveria mais o suspense, nem a surpresa, nem sequer a emoção ao desembrulhar um papel de presente. E saberia toda a repulsa que poderia causar em alguém que ela secretamente desejava. E seu sorriso empalideceu na face, desfalecendo.

Carola levantou-se, as pernas bambas, os passos sôfregos. Alcançou um lápis da escrivaninha e iniciou a árdua tarefa de apontá-lo com estilete. Sua mãe assustada escutou-a gritar.

sábado, 1 de maio de 2010

Meu amor vermelho em veludo

Não me faça implorar.

Vi hoje as tulipas mesmas dispostas igualmente sobre outro porém semelhante balcão. Eu realmente gosto de tulipas, elas me comovem. Tulipas vermelhas de identidade única esboçada em seu cálido interior. Vulneráveis. Uma criança pousou a mão sobre uma de suas flores e em contraste com esse gesto afetuoso, despedaçou suas pétalas em cálice com enorme violência. Pobres tulipas agora sangrentas.

Ela estava sentada na ponta da cama de costas esperando-o se trocar enquanto em vão implorava que ficasse. Por favor, não precisa ir embora agora, como uma cachorrinha perdida na esperança de encontrar um novo dono. Ele a beijou e fechou-a em seu mundo. Sentiu seu coração sendo despedaçado feita tulipa desnuda sentada no canto do quarto.

Eu gosto.

Pousou o Bordeaux na mesa. Olhou pra fora do café, enquanto olhava sem o menor interesse os transeuntes com a pressa citadina habitual. E como se estivesse nua e inerme diante do que fora dito, esboçou um sorriso acanhado e, sem ter onde pôr as mãos, recostou os dedos nas coxas frígidas e acariciou o tecido, como se tentasse desvencilhá-lo de uma ruga imaginária.
Uma coisa que ela jamais entendera é por que deveria se sentir tão miserável sem ter feito nada pra sê-lo de fato. Mas com um gesto dele, ou de qualquer outro que não precisava ser muita coisa, ruiria a auto-estima que com tanta labuta tentou erigir. As horas gastas à procura do vestido ideal, os pequenos pés exaustos da peregrinação pelo calçado que combinava perfeitamente para aquela ocasião, a maquiagem feita com precisão cirúrgica, e finalmente a briga com o espelho, recitando fervorosamente um mantra para convencer-se de que ele perderá o fôlego ao vê-la. Um ritual! E na verdade, talvez ela se preparasse tanto pra ser imolada como um sacrifício. Lembrava-se ainda de sua própria visão após a partida do rapaz nessa manhã. Olheiras de ressaca. O rímel borrando o entorno dos olhos. E algum resquício do batom escarlate que acreditara, na noite anterior, deixá-la vaporosa. Palhaça. E no canto direito do espelho do banheiro podia vislumbrar sobre o balcão de alvura imaculada o bouquet de tulipas já desmaiadas. Quase tão efêmeras quanto a esperança lânguida de um alento, quem sabe até mais caras e bem-vindas do que a sua companhia.

Mas eles que não gostam de mim em retorno.

(Segunda parte por Lux)