domingo, 9 de maio de 2010

ear infection

Carola devia ter seus 16 anos quando a coisa toda desandou feito maionese das temperadas. Era tempo de frio e o grunge estava super em alta, tudo muito xadrez sobreposto Cobain depressivo - mãe hoje não vou tomar banho - mas essas coisas nem se avisa, imagina se ela descobre.
Naquele tempo era difícil ser menina e ser assim, meio suja, as coisas embaixo acabavam por adquirir um cheiro todo especial de mar salgado e pescaria, se posso ser sutilmente clara o bastante, e nem existia essas facilidades da vida moderna de hoje em dia, essa tal de duchinha higiênica, esses sabonetes íntimos tecnológicos de até vinte contos, imagina só VINTE CONTOS, esses lencinhos umedecidos e frescurinhas. Lava aí com o sabão de soda, minha filha que fiz com a gordura do porco.
Mas Carola muito descolada e alternativa com as calças rasgadas e a sobreposição de 3 camisas xadrezes de padronagem diferente, ainda bem que pelo menos era inverno, e aqueles tênis desbastados, surrados sujos. Carola muito na moda Kurt com os cabelos um pouco abaixo do ombro e tão oleosos como pele de adolescentes do sexo masculino com excesso de hormônios tocando a si mesmos ao ver as revistas que escondiam vergonhosamente embaixo do colchão, descobertas somente pela irmãzinha que foi brincar de esconde-esconde um dia e aí já podem ver aonde tudo isso vai levar.

"MÃÃÃÃEEEE"

Mas o que realmente precisa ser dito é que um dia não deixaram Carola ser tão grunge quanto a sociedade exigia e a empurraram com todo seu excesso de roupas para baixo do chuveiro. Quantos dias, hein minha filha? Sem ver um pingo de água. E o cabelo escorria óleo feito hambúrguer de carne de terceira.
Ninguém dizia naquela época para colocar um algodãozinho com álcool no ouvido, que assim poderia se evitar aquela aguinha indesejada ou que cotonete não foi inventado para ser entuxado para dentro do canalzinho estreito. Em algum momento daquele demorado e tortuoso banho, alguma coisa meio azulzinha bolor de pão deve ter deslizado faceira orelha adentro, pois a reação que Carola teve ao sair do banho talvez possa ser justificada por essas condições.
A coisa coçava de endoidar, de Meu Deus minha mãe me dê esse lápis que vou enfiar aqui dentro! Nem se sabe quantos dias de algodão esverdeado, de compressas, de receitas caseiras com óleo de dendê e pimenta aquecida, nem se sabe. Porém o que é por muitas vezes repetido, acaba se tornando habito, e Carola nem lembrava mais que um dia era uma menina como todas as outras, e que as vezes tinha simplesmente preguiça de tomar banho naquela água gelada e justificava sua porca higiene através de um estilo musical da moda.
Alguns dias após a suposta recuperação, Carola, de fato ainda tornava por vezes a escutar algum ruído não muito familiar ou zumbidos deveras peculiares, confundindo seus sublimes pensamentos adolescentes, mas nada que alterasse em algum aspecto sua rotina escolar ou seu comportamento perante a robusta mãe, com o grosso avental encostado no forno preparando alegremente uma feijoada, ou até mesmo ao senhor pai debruçado sobre a mesa enquanto minuciosamente limpava as antigas carabinas.
Abandonado o cheiro de oceano, a menina, estirada na varanda dos fundos com uma de suas nostálgicas camisas surradas, verde e preta, porém agora livre de antigos micro habitantes e odores característicos, folheava com enorme falta de apreço uma revista meticulosamente desenvolvida para sua faixa etária, rosa e lilás, coisa de dar nojo, pensava enquanto seu lábio inferior enervava-se.Ouviu então chamando-a. Carola! Carola! Repetia avidamente, durante o período o qual a garota procurava aflita pela paisagem do quintal uma voz que nunca tinha escutado antes, masculina.
Sentou-se em um dos degraus, a testa franzida e as mãozinhas fechadas apoiando o queixo. Torturava seus pensamentos em alguma hipótese extraordinária para o que acabara de acontecer, um garoto me procurando? Supôs com certa insegurança, enquanto afagava carinhosamente o cachorro que acabara de se aproximar. "Barriga agora!" Carola levantou-se em um berro. Ela podia escutá-lo afinal, admirando-o sorridente enquanto o pobre animal suplicava abanando violentamente a cauda - Carinho!Carinho!
O quadro todo havia se acentuado de maneira absurda da noite para o dia. Conseguia ouvir as entranhas da senhora mãe reclamando desagradavelmente com um vocabulário chulo, enquanto comiam as sobras da janta no café da manhã - não são nada educadas, se me permite dizer - e a mãe observada intrigada a mudança atroz no comportamento de sua garotinha, ora extremamente ofendida, ora debruçada sobre a mesa gargalhando. Carola podia escutar os garotos da escola fantasiando sobre garotas curvilíneas no intervalo e garotas curvilíneas pensando em homens mais velhos. Escutava as professoras desejando que cada aluno ali presente estivesse morto, enquanto sorriam cínicas. Ouvia tímidas declarações de amor de corações amedrontados, fora do ritmo, e um sorriso esboçava-se deliciosamente nos lábios da menina.
Naquela noite a garota mal conseguiu dormir de tamanha ansiedade, rindo sozinha trancada no quarto. Imaginando as inúmeras possibilidades desse excêntrico dom adquirido. Enrolava-se nos lençóis com os dedos tensos pensando em todos os segredos e detalhezinhos escondidos que agora seriam para ela e somente ela revelados. Toda a vida alheia exposta, desnuda em seu ouvido mágico. Todas as vantagens e chantagens que poderia extrair disso. Todo o mal que poderia escutar sobre ela. Toda a raiva e angustia e dor e sofrimento. Não haveria mais o suspense, nem a surpresa, nem sequer a emoção ao desembrulhar um papel de presente. E saberia toda a repulsa que poderia causar em alguém que ela secretamente desejava. E seu sorriso empalideceu na face, desfalecendo.

Carola levantou-se, as pernas bambas, os passos sôfregos. Alcançou um lápis da escrivaninha e iniciou a árdua tarefa de apontá-lo com estilete. Sua mãe assustada escutou-a gritar.

2 comentários:

  1. Tá bem legal o conto. Mesmo estando num formato meio "wall of text" (deve ser influência do Kerouac), ele não faz o leitor perder a vontade de continuar :)

    Só acho que o fim ficaria mais legal se vc tirasse a penúltima frase do último parágrafo. É mais divertido quando o conto não explica tudo, deixando um detalhezinho para a imaginação do leitor.

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