segunda-feira, 22 de novembro de 2010

a saída

Nossa ultima noite juntos.

Tanto tempo que não nos encontrávamos mais. Acabamos os dois sem roupa, aconchegados sobre os lençóis emaranhados.

Fazia um friozinho gostoso e ele me abraçava pela cintura e me apertava como uma coisa muito doída de se perder. Nessa hora eu já sabia.

Eu sempre tive esse momento de compreensão profunda antes da vida partir, antes dela quebrar-se ao meio.

Ele beijava tanto meu ombro, meu pescoço, minhas costas salpicadas de suor.

Eu me esforcei, apertando meus olhos e tentando imaginar que aquilo era só a saudade inundando seu corpinho frágil. A danada da saudade nos unindo por uma ultima vez até adormecermos entrelaçados. Até o sol invadir as persianas. Até ele acordar. Até ele vestir a calça e a camiseta. Até ele me abraçar e pedir para que eu não sumisse. Até ele sumir.

Eu gostava do jeito que ele tímido, sorria para mim.

domingo, 24 de outubro de 2010

o vestido de noiva

O barulho da porcelana de ossos chinesa ressoando tímida no contato entre o pires e a xícara. Plin. Ele sempre com aquele olhar de incompreensão que me dói, o caderninho de notas à mão.
Eu juro que tentei me explicar da forma mais clara que me permiti.

Encontrei-o desmaiado atrás de um espelho. Você sabe como essas coisas mexem comigo, essa aura que as coisas abandonadas parecem emanar, uma saudade melancólica. Uma memória dolorosa. Eu não pude evitar me sentar ao lado dele, sobre o chão sujo e os objetos empoeirados. Era como se silenciosamente ele me chamasse choroso. Eu o desdobrei por inteiro. As pontas de meus dedos imediatamente deslizaram pelas rendas e bordados como uma caricia reconfortante. Eu o segurei delicadamente pelos ombros, era uma peça genuinamente maravilhosa. Contei as perolinhas que compunham o bordado, uma a uma. Os pequenos cristais que reluziam esplendorosos a luz do dia, a tanto tempo roubada. Eu o tomei em meu colo cuidadosamente para não magoá-lo mais do que o próprio esquecimento. Eu senti que precisava dele tanto quanto ele precisava de mim.
Dei a ele o melhor que pude. Um bom banho, um belo dia de sol. Sua trama tornou-se rapidamente de uma luminosidade ímpar. Imagine então minha felicidade ao descobrir que nos encaixávamos perfeitamente. Seus botões a beijar e cobrir gentilmente minhas costas alvas. Suas camadas de tule a roçar sutil em minhas pernas.
Eu só pude vesti-lo apenas uma vez. Fecho os olhos e me consome essa sensação de negligencia quando me lembro do vinho tinto a ser lançado sobre ele. Os adornos da renda contorcendo-se púrpuras, suas lágrimas alcoólicas. Eu tentei. Tentei por dias devolver a ele a pureza antiga que lhe maculei. Horas de preocupação e esforço que se resumiram em resultado algum. As pedrinhas se partindo à medida que minha tristeza o decompunha lentamente.
A única coisa que pude fazer foi continuar amando-o incondicionalmente, não pelo que ele era, mas pelo que ele não poderia mais ser. Deitava-o toda noite sobre meu leito e o abraçava pela cintura. Ambos dormíamos aconchegados, embalados pela brisa noturna. Fiz questão de que ele não se sentisse subestimado, sonhávamos todas as noites juntos e de manhã eu o recolhia. Com algum tempo ele começou a cheirar como meus lençóis, como o perfume que evaporava de minha pele, como os garotos que às vezes eu me deitava, com as bebidas que eu consumia quando me sentia demasiadamente sozinha. Com algum tempo ele era exatamente como eu.

Ainda dormimos juntos todos os dias, sua cintura fina se acomodando em meus braços, o cetim branco deslizando entre minhas coxas.

Ainda o recolho todas as manhãs, para que eu não o perca quando precisar de alguém para dormir comigo todas as noites.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Pendências

Desceu a mão pelas minhas costas e disse que era a coisa mais macia que ele já havia tocado. Disse que queria casar comigo. Ajoelhou nas pedrinhas e beijou minha mão. O joelho sujo de sangue pisado. O amor me afogando.

Eu me lembro dos anos que se passaram e de alguns instantes que permanecem intactos. Os dois ébrios sentados em alguma mureta com outro copo de cerveja na mão. Os personagens transfigurados e miscigenados ao nosso próprio caráter. Ele virou o copo de uma vez só. Eu não fiquei surpresa. Ele me analisou por alguns momentos e disse que eu poderia ser uma mulher devastadora se eu quisesse. Eu poderia cair na boemia e estragar o coração de todos. Eu nunca quis fazer uma coisa dessas, mas em algum momento eu estraguei seu coração.

Escutei-o gritando para todos no meio da festa que ele me amava e que eu era a mulher da vida dele. Senti-me um bocado envergonhada. Mas o que eu realmente queria dizer para ele era que

Nos gostávamos porque no fundo éramos iguais. Isso foi o que sempre acreditei no primeiro minuto em que olhei para ele esboçando um sorriso tímido que me quebrou por inteira. Seus dedos compridos desabotoando meu soutien preto rendado. Ele foi o primeiro a tocar em mim e isso é uma informação inútil que por muito tempo mantive em segredo.

eu estava muito desapontada porque eu gostaria que nós realmente pudéssemos nos apaixonar e todo aquele desperdício se transformasse em algo verdadeiro. O grande empecilho agora, se encontrava no fato de que qualquer palavra proferida não pareceria mais fazer parte da realidade.

Nos encontrávamos escondidos porque isso fazia sentido para ele. Embora ele nunca houvesse se incomodado em saber do meu parecer sobre esse assunto eu também não me importava conquanto eu pudesse estar com ele e me aconchegar em seus ombros magros enquanto ele me tocava mansinho. Eu nunca disse pra ele que ele era o primeiro a encostar em mim daquele jeito. Eu não sei se ele faria questão de saber.

Passamos um dia inteiro entrelaçados juntos ao lençol. O cheiro da carne macilenta me enchendo de náuseas. Eu já perdi as contas de quantos me tocaram daquele jeito depois dele. Ele olhou para o teto como se eu não estivesse ali. Ele se deitou em meu leito como se estivesse sozinho. Eu não sei se ele estava pensando em outra pessoa. Eu pensei somente nele por muito tempo. Eu sei que existem outros garotos que pensam em mim. Eu não me interesso por isso. Eu nunca quis fazer uma coisa dessas.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

not Ben

Ela começou a ajeitar os cabelos negros delicadamente com as pontas dos dedos enquanto permanecíamos ambas sentadas na beira de um verdadeiro oceano de água. Os pezinhos trêmulos imersos naquela imensidão azul céu. Minha coluna se curvava completamente enquanto eu abraçava minhas canelas. Beijei meus próprios joelhos. Minha caixa torácica expandia-se e comprimia-se vagarosamente. Encostei minha cabeça em seu ombro e disse que gostaria que nós fossemos outra coisa. Ela pousou sua mão em meu pescoço.

Eu pensei sobre o desinteresse como uma mosca desovando no intimo do meu ser. Suas larvas se alimentando furtivas de tudo aquilo que antes eu desempenhava com extrema força de vontade. Poderia existir uma barra inteira do mais fino dos chocolates, eu não a abriria. Havia ovos no topo do armarinho, eles nunca seriam batidos. Eu não tomaria meu fouet e expressaria minha paixão em um crème brûlée. Não passaria horas na maquina delineando vestidos fantásticos adquiridos como um sonho que se realizava. Não ouvia mais música, não acendia mais as luzes. O breu me tomava pela cintura e me mostrava a dança. Mas não havia dança.

O sol salpicava pequenas manchas em minha pele. Ela segurava uma sombrinha com a outra mão. Seus olhos refletiam a luz e se tornavam uma mistura verde acobreada. O protetor solar evaporava de nossas peles expostas. Começou a desenhar círculos com os dedos dos pés, sua voz expressou-se lastimosa.

"Sabe, Cê? Não é ele."

Minha penugem se eriçou como se a própria morte agora se juntasse a nós ali, na beira da piscina. Eu acredito que o tempo todo era exatamente aquilo o que eu mais temia ouvir, e a resposta para isso é porque no fim eu já sabia. E um longo tempo de minha vida eu deixara escapar no ensaio de me encontrar com garotos os quais eu imaginava que poderiam ser ele. Que me enganariam imitando seu comportamento ou sua aparência física, ou o seu modo de sorrir. Que poderiam se fazer passar por alguém que não poderia mais estar aqui. As lagrimas começaram a se esvair de meus olhos e se misturarem com aquele vasto mar. Ela me abraçou por inteira enquanto a única retribuição que eu podia oferecer eram meus soluços descontínuos.

Por algum tempo meu imaginário transbordou-se em conflito. Meus pensamentos beiravam a loucura enquanto eu associava ele a qualquer outro garoto ou deixava qualquer outro garoto se fantasiar dele. Adormeci sobre os azulejos mornos. A mão enrugando-se saturada na água e o sol infantil cobrindo meu corpo de rabiscos.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A mesa

Meus hormônios em fúria enquanto ele somente sorria. Eu o observava explicitamente todos os dias enquanto meus dedos formigantes se destruíam por debaixo da mesa. Eu o sentia olhando minhas coxas curvilíneas quando minha saia permitia todas as vezes que eu levantava. Eu podia sentir o cheiro desfragmentando da sua pele que anunciava que alguma coisa ali também subia. Bem ali. Eu o olhava se espreguiçando. Os músculos tensos, a carne exposta. Minhas pernas rangiam tensionadas por debaixo da mesa. Alguém fazia um comentário inapropriado. Seus olhos deslizavam pelas nuances de minha face na tentativa de descobrir minha reação, os dentes nus, despia os meus em retorno. Despiria-me toda em retorno. Minhas unhas travando uma batalha épica sobre meu colo. As pernas se cruzando inapropriadamente. Seu pé que esbarrava deliciosamente nas minhas canelas, acariciando. Algum objeto seu que caia sorrateiro por baixo da mesa, minha pelve entreaberta, exposta, entregue.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Cigarrinhos

Mathilda, porque diabos voce está guardando seus cigarros?
- eu não posso evitar, sinto pena deles...
- de cigarros?
- são como pessoas, compreende? Nós usamos até esgotarem e depois simplesmente jogamos fora...
- mas voce ainda assim os fuma.
- oras, eles precisam saber como é ser usado, mesmo que seja só um pouco...
- para que?
- aprenderem...
- e não é para isso que são feitos, minha querida? ser usado é a função de um cigarro...
- e não é a nossa?

(11/10/06)

domingo, 22 de agosto de 2010

Fagulha

O dia já se apagava e eu ainda estava lá, os braços abertos sobre o encosto de um banco na frente de um grande complexo de lojas. Observava sem muito interesse pessoas que iam e voltavam carregando fartas sacolas ou o vazio fechando os punhos cerrados, insatisfeitos, desejosos. Não importava a idade, e me enchia os olhos ver as mãos tão bem casadas dos amantes, sorrindo como se a vida fosse algo bonito de se viver. Penso que são essas coisas que ainda me dão um breve sopro de esperança enquanto assisto os garotos cobrindo sua nudez e abandonando o meu leito, para nunca mais.
E a noite já vinha mansinha tonalizando o céu de uma mistura rosa acobreada. O vento levantando meus cabelos levemente, acariciando minhas bochechas, eriçando suavemente a penugem tênue de minha nuca. As pessoas continuavam seu trajeto enquanto eu as observava como em um programa de natureza selvagem. Um cigarro no canto de meus lábios entreabertos.

Eu não sabia que você fumava.

Eu senti o estralar de meu pescoço na tentativa de descobrir o meu espectador. A franja espessa caindo sobre meus olhos. Ele colocou a mão no encosto, obrigando-me a recolher meus braços abertos tão bem acomodados. Ele sorriu. Eu me senti um tanto exposta. Queria dizer que não fumava, queria dizer que apenas gostava de manter o cigarro na boca e lentamente sugar toda sua essência. Permaneci silenciosa.
Ele se manteve calado assistindo o mesmo espetáculo natural que por tantas horas me entretinha.

Perguntou se eu tinha um cigarro.

Pensei por alguns segundos e delicadamente ofereci a ele o único que possuía, mantido em um longo contato intimo com minha língua. As marcas de batom e o filtro deformado e úmido. Ele o tirou de meus dedos cuidadosamente e o acomodou em sua boca. Acendeu. Deu uma bela tragada. Eu assisti seus pulmões se enchendo da minha essência e sofregamente a colocando para fora, como algo doído de se perder.

Ele disse que tinha o mesmo gosto que eu.

Eu sorri.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

domingo, 4 de julho de 2010

o grande show

Sabado de cerveja e vinho tinto seco que minha mãe deixou pra ele. Os lábios tingidos ansiosos. A lingua purpura. Vou te contar um segredo. Ébria, coloquei a mão no seu ombro enquanto esperavamos a próxima musica. Tem esse loirinho do cabelo meio compridinho, a gente sempre acaba se esbarrando pelas salas cinzas. Ele me olha com uma cara, aquela cara de quem quer muito uma coisa, aquela cara sofrida de desejo, entende? Acho que ele gosta de mim. Tem um nariz lindo de morrer. Isso me deixa excitada, Juro. Mas essa noite eu quero um de chapéu, é, essa é minha resolução. Gente de chapéu parece ser mais interessante, uma coisa assim meio literária, uma coisa assim meio de antigamente. Eu gosto de garotos inteligentes com seus óculos densos escrevendo longos contos. Isso me deixa excitada. Jurei.Ele acreditou em mim, disse que Cecília, hoje nós te arrumamos alguém, porque me padece muito te ver amuada com seus livrinhos suspirando pelos cantos. Agradeci. Agora me padece muito lembrar da cena em que eu despia seu chapéu ébano entrelaçando meus dedos pelos grossos cabelos negros. A pele alvíssima somando-se a minha. Ele sorriu para mim enquanto também esperava. Juro.

terça-feira, 29 de junho de 2010

the french erotic film

Toda noite eu engulo um comprimido. Não o faço por amor, mas por necessidade e me desfaço no leito macio e arrumado que faço todas as manhãs, ou quando sinto que é dia de visita. Eu tenho essa sensação dentro de mim, sabe? Que alguma coisa vai acontecer, deve ser por isso que usualmente esbarram comigo pelos cantos rancorosa e taciturna, porque a sensação não desabrochou ou voltou ao desmaio.
Na ocasião eu já havia por muito me enfadado e desistido, a pílula rosinha não funcionou, a pilantra. Resolvi levantar, os chinelinhos simetricamente colocados ao lado da cama para o lado errado, tive de dar uma volta inteira só para. Tomei um banho, tornei ao leito, a vida apagou.
Sonhei uma vez, e outra, mas a ultima... Ah! foi fervorosa. Acordei descabelada com a nuca em febre, envolta em cobertores excessivamente desalinhados. Assustada com o telefone que tocava dentro da fronha, olhando para o celular e pensando como era incrível esse sentido extra, aflorando em todo pai, quando eles sentem a criançada se divertindo.
Sonhei com esse menino aí. Uma graça de se ver com uns óculos quadrados fora de moda e o cabelo oleoso que lhe cai tão bem, me fazendo questionar minha própria higiene. O sujinho, como ele disse, olhou no fundo dos meus olhos e perguntou porque você gosta desses meninos sujinhos, Cecília? Eu não! Mas só pude ficar corada e suspirar erguendo os ombros.
E ele estava tão deliciosamente erótico em meu sonho, que até me dói relembrar a cena. Os cabelos maiores e selvagens roçando minhas clavículas, a barba por fazer corrompendo seus poros imaculados enquanto me olhava com aquele tipo de olhar que simplesmente desmonta. Maldito celular enfiado embaixo do travesseiro.
No dia seguinte me encontrava sentada em uma salinha minúscula praticando o meu exercício rotineiro de espera. E lá estava Cecília com seu cabelo desgrenhado, a roupa escolhida sem o menor critério, a falta de classe na pose que curvava praticamente sua coluna vertebral inteira, enquanto sem esperanças vê o menino dos sonhos passar.
Eu tenho essa sensação dentro de mim, sabe? Que alguma coisa vai acontecer.

domingo, 27 de junho de 2010

Porque não ter uma filha

O carro se aproximava ronronando mansinho pela rua, e minha mãe me olhava com os olhos cheios de desespero, ajeitando delicada a gola de minha blusa. Ouvia-se o freio sendo puxado e a lanterna a se tornar mais tênue desvanecendo na escuridão. ela me beijava a testa e me abraçava como se estivesse prestes a me entregar para o açougueiro. Eu não entendia muito bem e sorria de volta um tanto preocupada, e nervosa, cheia de borboletas no estomago, enquanto o moço do lado de dentro do carro abria a porta.
Nesse dia eu tornei a casa por volta das 5 da manhã, somente porque era preciso. O barulho das chaves, que se enfiavam estreitas nas ranhuras da fechadura, fez com que ela despertasse de seu doce sonho de pílulas felizes, me indagando alterada que horas eram. Eu menti, disse que não chegava a ser 3. Passou o dia seguinte desaprumada, questionando a dignidade de uma filha que passa tanto tempo sozinha com um rapaz.
Eu disse que queria trazê-lo pra casa. Ela se exaltou um bocado, me indagando se eu pensava em "transar" com o garoto só porque queria trancar a porta. E se eu quisesse? Já tinha idade para isso, ou era pelo menos o que eu pensava aos 17 quando temia ser enterrada em um caixão branco.
Essa noite em particular, ele estava mais vistoso e minha mãe finalmente sentiu-se um pouco menos desconfortável em conhecê-lo, o cumprimentando respeitosamente. Disse que iria sair e me abraçou forte, como se houvesse acabado de entregar a carne para o abate.

sábado, 26 de junho de 2010

Saudade

Eu não me importava de acordar todos os dias às 7 horas, dormindo perto da meia noite e amanhecendo como se um trator me atropelasse durante o sono, sôfrega e tremula. Bem, na verdade eu me importava, regando os meus dias de um palavreado chulo inconfundível.
Tinha esse garoto lá aonde eu ia. Não éramos tão próximos a inicio e não sei dizer se a proximidade nos acolheu no final, mas à medida que os dias passavam eu não me importava mais de acordar todos os dias às 7, assistindo o menino chegando de manhã, mau humorado me esboçando um sorriso e me beijando a bochecha. Eu gostava quando ele me beijava a bochecha, e ele o fazia sempre, até quando nos encontrávamos em outras ocasiões, como um pequeno ritual que era só meu e dele. Para as outras pessoas bastava um aceno, um breve sorriso esboçado no canto dos lábios, um cumprimento sonoro, um aperto de mão. Eu não gosto que encostem em mim. Ele era diferente com seu pull over xadrez e sua camiseta pólo que se esgueirava gola a fora. Avistava-me de longe e parava para que eu fosse lhe dar um beijo, sorridente. Queria dar lhe um abraço, queria pular no seu colo, queria que ele me levantasse do chão e me rodopiasse. E o olhava sentado à mesa na minha frente enquanto minhas idéias transbordavam de malícia. Falava me olhando fixo como se no fundo soubesse, sentia meu coração a beira de um ataque enquanto envergonhada só podia desviar o olhar. Eu queria. Sabia que ele tinha uma namorada há algum tempo atrás, só não sabia se os dois estavam juntos ainda. Um dia o senti subitamente omitindo o nome dela enquanto me contava uma história. Nunca tive a coragem de perguntar, só a certeza que as coisas estavam mudando e agora ele chegava me beijando a bochecha, me fazendo rir e encostando em mim. Eu não me importava que ele encostasse seu corpo junto ao meu e se acomodasse no meu ombro. Às vezes nossas mãos se tocavam, eu quase perdia o fôlego, minhas pernas desvencilhavam, ele sorria, um sorriso sincero bonito de se ver, com aqueles óculos de aros grossos e os olhos miúdos. Eu gosto de óculos. Gostava também quando ele tirava e aí eu podia admirá-lo com a fronte límpida, clara. E então as brincadeiras se intensificaram, os olhares, o jeito que ele afagava meu cabelo com um carinho imenso. Às vezes era só eu e ele, e quando estávamos fora também ficávamos sozinhos por algum tempo em algumas situações. Saíamos de carro e ele sentava-se ao meu lado e riamos juntos enquanto meus pensamentos já eram realmente impróprios. E nada aconteceu.
Quando nos vemos agora, faz questão de me dar um beijo, porque a gente já não se encontra mais com tanta freqüência.

sábado, 19 de junho de 2010

Conversa de vó

-E você para de chutar os moços.
-Mas eu não chuto ninguém!
-Chuta sim que eu sei, com esse seu geniozinho que é danado.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O presente

Era um desses dias que o céu é azul de doer, e eu lembrava dele me dizendo que uma foto dessas, para um céu assim, a abertura do obturador tinha de ser mínima, coisa de um pontinho de luz invadindo sublimemente a câmara escura. E lá estava eu sentada em um desses bancos de concreto de praça, os dedos que escapavam da luva tentando mudar a página teimosa do livro. Mordiscava ternamente um cigarro rosa, presente. Ela olhou pra mim com confiança e me perguntou se era dos dias dos namorados. Fiquei puta, uma merda de dia, pensei. Não, ganhei a meia no natal. Ela deslizou as unhas pelo cabelo dizendo que era difícil combinar essas coloridas assim, mas que eu realmente havia sucedido em uma coisa incrível.
O sol acariciava minha nuca parcialmente, sua luz difusa filtrada pelas arvores ao meu redor. Que sensação boa, essa de se sintetizar cálcio facilmente.
Minha garota chegou atrasada. Sentou-se ao meu lado, tirou o cigarro de mim com um beijo, a língua gelada me tocando os lábios mornos. Acendeu e deu uma boa tragada, imergiu no banco como se afundasse em uma banheira. Olhou-me curiosa, os pezinhos balançando dentro das botinas pesadas. Tinha uns olhos enormes, questionadores, e o cabelo estragado feito vassoura de palha, castanho. Enrolou um de meus cachos ao redor de seu dedo indicador, fazendo voltas. Não pude evitar e acabei perguntando o que ela estava pensando. Tragou o cigarro novamente, os enormes olhos fechando-se como janelas, ergueu a cabeça sorridente. Já assustou outro rapaz de novo, hein Cê?
Começou a tossir com a fumaça. Abanei a pobre alma, olhei para o céu azul com um grande suspiro.
Se ele pedisse, eu bem que o perdoaria, você sabe como meu coração é enorme, não sabe? Ela começou a rir, me fazendo cócegas. É claro que é, Cê, eu bem que sei.

às sete

Perguntei se poderia fazer o exercício deitada com alguns livros sobre mim, queria saber se faria o mesmo efeito. Ele sorriu gentilmente com os pequenos olhos azuis transparentes como vidro, uma pequena abertura entre os dentes da frente. Pediu me para manter a calma e soltar a tensão, enquanto com as mãos firmes pressionava meu abdômen forçando a permanência do ar. Sentiu isso? Quase tocava o dedo em meu nariz, risonho olhando curioso para os outros da sala. Disse que eu era tímida demais. Mas eu estou tentando, juro que estou. Sorriu, perguntou se eu não sentia frio de estar ali quase pelada. Minhas maçãs rubras. Minhas pernas de fato coçavam e conforme a noite caía, podia observar os poros eriçando. Até segunda. Tchau. Obrigada. Alguém gritou por mim. Perguntou-me se eu estava com pressa, disse que precisava falar comigo, coisa de dois minutos. Queria me perguntar uma coisa. E então, o que é? Enquanto caminhávamos. Resolvi te perguntar, sabe? Pensei comigo mesmo, que se eu não perguntasse, bem eu não teria como adivinhar, não é mesmo? Concordei com um sorriso. Queria saber se você quer ficar comigo. Minhas maçãs rubras. É que eu estou saindo com um cara, sabe? Tudo bem, eu só queria saber, não precisa ficar sem graça.

domingo, 13 de junho de 2010

Amanhã vou comprar outra meia sete oitavos, fantástica.

au retour à la normalité

Voltei para casa com aquele cheiro de fumaça se agarrando nas minhas roupas, uma luz negra e até você poderia ver as mãozinhas da safada se segurando em mim. Passei as mãos para ajeitar a saia e senti um furo na meia fina. Malditas meias frágeis. Uma vez paguei 20 contos em uma, sete oitavos com barra rendada, fantástica, rasguei a danada na mesma noite. Estava meio bêbada e, só pude sentir o dedo trespassando a coitada.
Queria furar todos os sinais dessa vez. Quem quer brincar da roleta? Eu, eu! Mas senti seu olhar reprovativo e me contive.
Essa coisa já havia me acontecido antes. Outro moleque aí. Levei o menino pra minha casa. O ego inflou, vou fazer o que? E posso ainda lembrar claramente a fronte embriagada me falando que a camisinha secou. Não, meu bem, sou eu que não estou sentindo a menor graça. Desisti, virei para o lado, capotei. Acordei assustada e seminua com um cara enrolado em meus lençóis. Fico puta. Normalmente eles cheiram tão bem, a mistura de baunilha orquídea que se desprende de minha pele na insônia noturna. Mas então eles aparecem e estragam tudo com aquele cheiro próprio que eles têm.

sábado, 12 de junho de 2010

Meu organismo demasiado frágil

Era noite e ele fumava um desses cigarrinhos espertos, fazendo a fumaça sair boleada boca a fora, coisa linda de se ver. Apertava os olhos e dava outra tragada. Enchia o peito, as marquinhas amarelas tão bem delineadas nas pontas dos dedos. Estávamos sentados na beira da praia, descalços, a água do mar beijando delicadamente a ponta de meus dedos, espumosa.
Eu sempre gostei da praia noturna, da areia escura, do mar chumbo guardando os segredos sujos dos casaizinhos apaixonados. E lá estávamos nós sentados lado a lado, ele com o braço cruzado por trás de mim, e a mão que fazia círculos carinhosos no meu ombro descoberto.
Interrompeu o gesto e com a testa franzindo, perguntou-me - Porque é que você nunca fuma um desses hein, Cê? Talvez ajudasse a aliviar um pouco sua tensão,sabe? - Eu continuei a olhar para a imensidão daquela água infinita enquanto pensava em alguma resposta que ele, naquele estado deplorável, poderia entender.
Levantei-me e a saia ergueu-se sem vergonha com a brisa. Ele começou a rir, me olhando ainda sentado. Peguei em suas mãos para que se levantasse e pedi que me rodasse com toda a força do mundo. Ergueu a manga da blusa, chacoalhou um pouco a cabeça, segurou meus braços e girou, girou, girou, girou, girou, girou, girou... Meus pés levitaram sobre a areia, os cabelos selvagens, os maxilares arreganhados de tanto sorrir. Pousou-me delicadamente sobre o chão.
Eu estava em puro êxtase. As pupilas dilatadas, as mãos tremulas, o coração em um disparo. A sensação torpe, as extremidades adormecidas, o corpo desmaiado. As bochechas coradas, os sons ecoando em um doce suspiro, o deleite sem a droga.

Garotas

E como são simplesmente detestáveis, apesar da perfeita composição estética que seus corpos apresentam.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Garotos

E como suas explicações, ou a falta das mesmas me fogem da compreensão.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Porque livros e não pessoas

Sentou em uma cadeira de jatobá curvada a vapor, os tons achocolatados se misturando com a beleza dos veios que reluziam no acabamento, uma verdadeira obra de arte, coisa impar nesse reinado de MDFs e compensados, seus olhos sorriram.
Um carioca com canela, por favor. Porque um dia a menina que morava com ela disse que era abortivo. Quando você achar que a pílula não funcionou, só fazer um chá. Agora tinha um adesivo e dizia que era só ter força de vontade, como largar de um cigarro. Um pouco mais de determinação e a vida não se prende no seu útero, é verdade. Assoprou a xícara, as mãos feito conchinha se aquecendo no calor.
Deslizou os dedos magros para dentro da bolsa branca de pelica. Alcançou um livro com certa dificuldade no embaralhado da rotina que precisava ser carregada com dificuldade, e peso. A encadernação desgastada, as beiradas côncavas, as páginas adquirindo outra tonalidade, o cheiro impregnado nas folhas, a personalidade amadurecendo.
Quantas horas haviam se perdido na repetição de uma frase, ou página ou capítulo. Quantas vezes tornou a ler a peça com a mesma empolgação a qual desembrulhava um romance inédito, e não se fatigava. Cada trecho relido revelava um novo segredo, uma descoberta extraordinária, uma interpretação alternativa.
Conforme se desenvolvia, era como se os livros acompanhassem seu crescimento, transfigurando-se, mudando de tom, de humor, de sensibilidade. E ao mesmo tempo eram tão constantes, imensamente equilibrados. Sabia que no fim Catherine sempre amaria Heathcliff e isso não haveria de mudar. Talvez os gestos, a intensidade, as entonações, mas o resto assegurava-lhe uma tremenda segurança.

Olhou impaciente no relógio. Fechou a conta. Suspirou desconsolada. Abandonou o recinto.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Tanto Mar

Os lençóis acordaram emaranhados. Suas voluptuosas curvas se insinuavam em breves feixes de luz que permiti entrar. O dia acorda. Espreguiço-me. A alça da blusa de seda desliza sorrateira pelo meu ombro. Estremeci. A manhã está úmida, e eu. Meu corpo pesa sobre a cama. O que havia acontecido? e a lembrança do sonho me toma, enquanto o cheiro de ópio invade minhas narinas avermelhadas.
Marina dos olhos verdes que me afogavam. Sua voz latente inundando meus pensamentos imaturos, infantis. Era mais velha do que eu, um ano. Pegava-me pela mão e me ensinava a brincadeira. Os lábios delineados de cor púrpura sujos de areia. A pele salgada. O biquíni de babados.
Disse que eu não precisava da parte de cima. Ergui os braços, ela tirou. Seus braços ternamente se enlaçaram ao meu redor. Não precisa ter vergonha - ela sorriu. Fiquei contente.
Minha Marina dos cabelos acobreados deitada sobre minhas costas contando pintinhas. A coxa dourada pressionando firme contra a minha. A regata frouxa roçando seus seios maduros. Nosso suor se misturando. A pele que ardia. Acendeu um incenso de papoula e me ensinou a brincadeira.


Sei que há léguas a nos separar.

Cá estou carente.

domingo, 30 de maio de 2010

Assinado eu

E te peço,
Me perdoa,
Me desculpa.

sábado, 29 de maio de 2010

Câncer de cachorra

Ele me perguntou se era nos peitos e o que pude fazer foi simplesmente confirmar acenando tragicamente a cabeça. Como ele sabia? Disse-me que geralmente é ali, pelo menos foi isso que escutou a mãe conversando no telefone um dia desses.

Havia um resquício de sangue seco nos fundilhos da minha roupinha íntima, ele acendeu o charuto, esboçou um sorriso interno, a cartola sombreando seus olhos, cada vez mais doente, hein querida? Deu um trago, o sorriso externou-se, começou a gargalhar. Eu permaneci sentada, a xícara de café amornando entre meus dedos, tentando enxergar com dificuldade enquanto o sol trepidava nos meus olhos, queimando.

Nega, era esse o nome dela, e isso eu não vou nem esconder. Tinha um pelo azulado lustroso que descia deslumbrante por toda sua arqueada coluna, e deitava-se com as patas dianteiras cruzadas elegantemente. Podia ficar horas admirando sua beleza crua, enquanto com aqueles belos olhos caramelos me observava submissa, as patas cruzadas. Meu pai me disse que quando elas faziam isso, eram naturalmente imunes a desenvolver algum câncer ou tumor. Seriam sempre saudáveis, viveriam plenamente.

Ele parou a conversa e apontou para mim, mas que elegância! Todos me olharam. Peguei-me sentada com as pernas cruzadas e os braços cruzados pousados delicadamente sobre a coxa. Lembrei.

Sua primeira filha não teve tanta sorte. Eu me perguntava o porquê que ela os carregava tão desajeitada pelas patinhas enquanto seus caninos branquíssimos rompiam a pele tenra de seus bebes. E os enchia de bicho, lambendo-os compulsivamente na tola esperança de tirar, os vermes. Uma bicheira danada comendo os nenéns por dentro, começando pelas patinhas esgarçadas. Eu segurava a pequenininha, a menor da ninhada, na tola esperança, enquanto todo o tempo ela chorava, os olhinhos azuis que mal conseguiam ver a luz atravessando aquela membrana tênue. Comprei um negócio prateado que mataria tudo. Cheguei e o bichinho estava duro estendido no chão, as perninhas rijas enquanto os vermes refestelavam na vitória. Minha mãe me abraçou bem forte. Não chorei.
Coloquei o mesmo nome em uma nascida da segunda ninhada. O tempo era bom, seco, não precisava ficar carregando eles por aí. Uma bola de pelos ela era, coisa mais linda de se ver, e a mãe sabia, precisava ser conquistada toda vez que eu me atrevia a mexer nos seus filhotes.

-Uma mulher como você, ele devia lamber o chão que você pisa- e todas essas coisas bacanas e encorajadoras que só uma mãe sabe dizer sobre o novo cara que ela decerto não aprova. Eu disse a ela que mordesse a língua, quando ele viu a calcinha ensangüentada e sentou-se no chão, os olhos transbordando em dor. Porque ele sabia, sabia e ficou, diferente de todos os outros que apenas suspeitaram e foram embora.

Nós crescemos juntas, quero dizer, eu e a cachorra. E seus filhotes a perseguiam famintos, os dentinhos afiados querendo mascar os mamilos leitosos. O leite empedrou. As mamas rijas, depois de umas três ninhadas interrompidas por doses cavalares de injeções preventivas. Prevenir o que? A vida. E eu me desesperava na vã tentativa de ensiná-la a cruzar as patas.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Três

Então é isso? - Cecília perguntou amargamente com tamanho nojo que podia sentir transpirando de seus poros. Minha Cecília Ana com os dedos parcialmente encobertos em uma de suas luvas esquisitas que revelavam.
Não é assim Cecília...
Ela jogou o café na minha cara, não, mas sei que bem quis, e seu corpo permanentemente entorpecido havia concentrado todo o resto da vida naqueles dedinhos congelados.
Eu achei, sabe? Eu achava que eu era única. Você disse, sabe? Eu juro que escutei você dizer uma vez dessas.
Eu só queria me esconder. Entrar em baixo da mesa, sair correndo, qualquer coisa do gênero. Estava paralisado e Cecília Ana prestes a me estrangular,me dar um murro ao menos, já podia sentir o roxo esverdeado espalhando a dor latejante pela minha face.
Pude suspirar aliviado quando desviou o olhar de mim. Havia uma outra moça na mesa, e eu já havia me esquecido dessa aí. Mas na minha frente estava Cecília fitando a pobre coitada com monstruoso desprezo. Apostei que cuspiria e esperei ansioso por uma eternidade, uma eternidade muda, calada.
Cecília levantou-se bruscamente, a pose imaculada, deslizando para fora do recinto.
Reuni minhas tralhas, parti. A moça? Bem, e nem me lembro na verdade, deve ter ficado por ali mesmo, que me importa isso?

domingo, 9 de maio de 2010

ear infection

Carola devia ter seus 16 anos quando a coisa toda desandou feito maionese das temperadas. Era tempo de frio e o grunge estava super em alta, tudo muito xadrez sobreposto Cobain depressivo - mãe hoje não vou tomar banho - mas essas coisas nem se avisa, imagina se ela descobre.
Naquele tempo era difícil ser menina e ser assim, meio suja, as coisas embaixo acabavam por adquirir um cheiro todo especial de mar salgado e pescaria, se posso ser sutilmente clara o bastante, e nem existia essas facilidades da vida moderna de hoje em dia, essa tal de duchinha higiênica, esses sabonetes íntimos tecnológicos de até vinte contos, imagina só VINTE CONTOS, esses lencinhos umedecidos e frescurinhas. Lava aí com o sabão de soda, minha filha que fiz com a gordura do porco.
Mas Carola muito descolada e alternativa com as calças rasgadas e a sobreposição de 3 camisas xadrezes de padronagem diferente, ainda bem que pelo menos era inverno, e aqueles tênis desbastados, surrados sujos. Carola muito na moda Kurt com os cabelos um pouco abaixo do ombro e tão oleosos como pele de adolescentes do sexo masculino com excesso de hormônios tocando a si mesmos ao ver as revistas que escondiam vergonhosamente embaixo do colchão, descobertas somente pela irmãzinha que foi brincar de esconde-esconde um dia e aí já podem ver aonde tudo isso vai levar.

"MÃÃÃÃEEEE"

Mas o que realmente precisa ser dito é que um dia não deixaram Carola ser tão grunge quanto a sociedade exigia e a empurraram com todo seu excesso de roupas para baixo do chuveiro. Quantos dias, hein minha filha? Sem ver um pingo de água. E o cabelo escorria óleo feito hambúrguer de carne de terceira.
Ninguém dizia naquela época para colocar um algodãozinho com álcool no ouvido, que assim poderia se evitar aquela aguinha indesejada ou que cotonete não foi inventado para ser entuxado para dentro do canalzinho estreito. Em algum momento daquele demorado e tortuoso banho, alguma coisa meio azulzinha bolor de pão deve ter deslizado faceira orelha adentro, pois a reação que Carola teve ao sair do banho talvez possa ser justificada por essas condições.
A coisa coçava de endoidar, de Meu Deus minha mãe me dê esse lápis que vou enfiar aqui dentro! Nem se sabe quantos dias de algodão esverdeado, de compressas, de receitas caseiras com óleo de dendê e pimenta aquecida, nem se sabe. Porém o que é por muitas vezes repetido, acaba se tornando habito, e Carola nem lembrava mais que um dia era uma menina como todas as outras, e que as vezes tinha simplesmente preguiça de tomar banho naquela água gelada e justificava sua porca higiene através de um estilo musical da moda.
Alguns dias após a suposta recuperação, Carola, de fato ainda tornava por vezes a escutar algum ruído não muito familiar ou zumbidos deveras peculiares, confundindo seus sublimes pensamentos adolescentes, mas nada que alterasse em algum aspecto sua rotina escolar ou seu comportamento perante a robusta mãe, com o grosso avental encostado no forno preparando alegremente uma feijoada, ou até mesmo ao senhor pai debruçado sobre a mesa enquanto minuciosamente limpava as antigas carabinas.
Abandonado o cheiro de oceano, a menina, estirada na varanda dos fundos com uma de suas nostálgicas camisas surradas, verde e preta, porém agora livre de antigos micro habitantes e odores característicos, folheava com enorme falta de apreço uma revista meticulosamente desenvolvida para sua faixa etária, rosa e lilás, coisa de dar nojo, pensava enquanto seu lábio inferior enervava-se.Ouviu então chamando-a. Carola! Carola! Repetia avidamente, durante o período o qual a garota procurava aflita pela paisagem do quintal uma voz que nunca tinha escutado antes, masculina.
Sentou-se em um dos degraus, a testa franzida e as mãozinhas fechadas apoiando o queixo. Torturava seus pensamentos em alguma hipótese extraordinária para o que acabara de acontecer, um garoto me procurando? Supôs com certa insegurança, enquanto afagava carinhosamente o cachorro que acabara de se aproximar. "Barriga agora!" Carola levantou-se em um berro. Ela podia escutá-lo afinal, admirando-o sorridente enquanto o pobre animal suplicava abanando violentamente a cauda - Carinho!Carinho!
O quadro todo havia se acentuado de maneira absurda da noite para o dia. Conseguia ouvir as entranhas da senhora mãe reclamando desagradavelmente com um vocabulário chulo, enquanto comiam as sobras da janta no café da manhã - não são nada educadas, se me permite dizer - e a mãe observada intrigada a mudança atroz no comportamento de sua garotinha, ora extremamente ofendida, ora debruçada sobre a mesa gargalhando. Carola podia escutar os garotos da escola fantasiando sobre garotas curvilíneas no intervalo e garotas curvilíneas pensando em homens mais velhos. Escutava as professoras desejando que cada aluno ali presente estivesse morto, enquanto sorriam cínicas. Ouvia tímidas declarações de amor de corações amedrontados, fora do ritmo, e um sorriso esboçava-se deliciosamente nos lábios da menina.
Naquela noite a garota mal conseguiu dormir de tamanha ansiedade, rindo sozinha trancada no quarto. Imaginando as inúmeras possibilidades desse excêntrico dom adquirido. Enrolava-se nos lençóis com os dedos tensos pensando em todos os segredos e detalhezinhos escondidos que agora seriam para ela e somente ela revelados. Toda a vida alheia exposta, desnuda em seu ouvido mágico. Todas as vantagens e chantagens que poderia extrair disso. Todo o mal que poderia escutar sobre ela. Toda a raiva e angustia e dor e sofrimento. Não haveria mais o suspense, nem a surpresa, nem sequer a emoção ao desembrulhar um papel de presente. E saberia toda a repulsa que poderia causar em alguém que ela secretamente desejava. E seu sorriso empalideceu na face, desfalecendo.

Carola levantou-se, as pernas bambas, os passos sôfregos. Alcançou um lápis da escrivaninha e iniciou a árdua tarefa de apontá-lo com estilete. Sua mãe assustada escutou-a gritar.

sábado, 1 de maio de 2010

Meu amor vermelho em veludo

Não me faça implorar.

Vi hoje as tulipas mesmas dispostas igualmente sobre outro porém semelhante balcão. Eu realmente gosto de tulipas, elas me comovem. Tulipas vermelhas de identidade única esboçada em seu cálido interior. Vulneráveis. Uma criança pousou a mão sobre uma de suas flores e em contraste com esse gesto afetuoso, despedaçou suas pétalas em cálice com enorme violência. Pobres tulipas agora sangrentas.

Ela estava sentada na ponta da cama de costas esperando-o se trocar enquanto em vão implorava que ficasse. Por favor, não precisa ir embora agora, como uma cachorrinha perdida na esperança de encontrar um novo dono. Ele a beijou e fechou-a em seu mundo. Sentiu seu coração sendo despedaçado feita tulipa desnuda sentada no canto do quarto.

Eu gosto.

Pousou o Bordeaux na mesa. Olhou pra fora do café, enquanto olhava sem o menor interesse os transeuntes com a pressa citadina habitual. E como se estivesse nua e inerme diante do que fora dito, esboçou um sorriso acanhado e, sem ter onde pôr as mãos, recostou os dedos nas coxas frígidas e acariciou o tecido, como se tentasse desvencilhá-lo de uma ruga imaginária.
Uma coisa que ela jamais entendera é por que deveria se sentir tão miserável sem ter feito nada pra sê-lo de fato. Mas com um gesto dele, ou de qualquer outro que não precisava ser muita coisa, ruiria a auto-estima que com tanta labuta tentou erigir. As horas gastas à procura do vestido ideal, os pequenos pés exaustos da peregrinação pelo calçado que combinava perfeitamente para aquela ocasião, a maquiagem feita com precisão cirúrgica, e finalmente a briga com o espelho, recitando fervorosamente um mantra para convencer-se de que ele perderá o fôlego ao vê-la. Um ritual! E na verdade, talvez ela se preparasse tanto pra ser imolada como um sacrifício. Lembrava-se ainda de sua própria visão após a partida do rapaz nessa manhã. Olheiras de ressaca. O rímel borrando o entorno dos olhos. E algum resquício do batom escarlate que acreditara, na noite anterior, deixá-la vaporosa. Palhaça. E no canto direito do espelho do banheiro podia vislumbrar sobre o balcão de alvura imaculada o bouquet de tulipas já desmaiadas. Quase tão efêmeras quanto a esperança lânguida de um alento, quem sabe até mais caras e bem-vindas do que a sua companhia.

Mas eles que não gostam de mim em retorno.

(Segunda parte por Lux)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

The Glow, ou a luzinha esverdeada que não ilumina

"E não é porque voce vê, é porque na verdade voce não está vendo."

Era uma noitinha dessas bem ordinárias e eu me encontrava sentada desleixadamente em uma cadeira com uma das pernas em cima e a outra nem tanto, em uma falha e árdua tentativa daquela menina que não deveria ser menina de pintar as unhas, esmaltá-las - custa só cinco reais, tirar a cutícula sai mais caro.
O vento entrava sorrateiramente mudo, filtrado pelas barreiras que a janela impunha, e eu, muito concentrada nos dedos, nas acetonas e nos palitinhos, e eu que nem olhava para lá. Foi essa a primeira vez que eu vi o brilho, o flash de câmera, a luz saturada piscando. Vi assim, de relance, de visão periférica, sem bem ter certeza do que tinha acabado de acontecer. Assustei-me, ah... a primeira vez sempre assusta. Sensação de estranheza enquanto a coisa simplesmente te invade e te ilumina por dentro, debochando do seu medo. A escada até rangeu enquanto eu tentava espiar pelas frestas da janela se algum maluco estava a me espionar. Estremeci, larguei as cores espalhadas pelo balcão e me meti embaixo das cobertas, o esmalte todo borrado.
Passado algumas semanas, me deparei com uma estranha coincidência que por uma noite ou outra posso dizer que tenha quase me tirado o sono, nessa época da vida que era tão fácil dormir, coisa de se virar para o lado e. Estava prestes a me deitar, aconchegada nos macios edredons que com tanto amor e ternura eu tenho certeza de que minha mãe arrumou para mim. Ao fechar os olhos na penumbra das pálpebras, um ponto de luz invasor atravessava a semi-transparência. Verde. Abri os olhos sem acreditar realmente no que estava vendo, enquanto na janela piscava solenemente um ponto esverdeado. Sentei-me na cama e por um tempo admirei essa minha possível falta de lucidez temporária enquanto forçava a entender o acontecimento. Desvencilhei-me das cobertas apenas para me deparar com um inseto muito feio, feio mesmo preso no lado de dentro da tela, mas se todas as janelas estão fechadas, coçava a cabeça com uma expressão de incompreensão estampada na face observando a criatura piscar.
À medida que o fim daquela época se aproximava, penso agora se em algum momento levei um forte tombo ou com demasiada força encontrei minha cabeça em alguma aresta, e talvez tudo aquilo fosse apenas o resultado de alguma falha ou possível seqüela. O que passou a se suceder era que o brilho agora emanava de vários lugares. Sacolas, frestas, arbustos, pessoas. É até as pessoas piscavam, me enlouquecendo com um tipo bizarro e impossível de luz. Realmente me incomodava a falta de sentido transpirando desses meus erros visuais, até o dia que não se repetiram mais.
Pela quarta feira da semana passada, estava sentada em um cômodo azul e um tanto peculiar, sem muitas janelas e a luz tão tênue chegando a doer os olhos. As pernas esticadas pela parede em uma pose não convencional, a cabeça quase para baixo, os saltos arranhando a pintura e a saia quase subindo até a barriga, esperando impacientemente com um livro no colo e os cabelos alourados contrastando com a poltrona preta de veludo cotelê. Seria até uma foto interessante, imagino, se algo que piscou não tivesse refletido na lente.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Adeus

Porque veja bem se você entende, ela suspirou pressionando a mãozinha fechada contra o peito semi nu, é como, é como se tivesse um buraco, bem aqui, compreende? Os olhos pretos feito duas jabuticabas molhadas, e isso me toma às vezes por completa, sugando toda a vida ali pra dentro, o ganancioso. Ele riu esparramado na cama, o calção aberto, a pele viscosa, ofegante - Isso tudo é desculpa, Cecília, larga a mão de exageros! Vai lá na cozinha e pega aquele vinho, vamos, eu abro pra você, e aí você fica mais relaxada, sem essas neuras e complicações, chega de ser complicada menina. Põe aquele vestidinho curto que eu gosto, e a gente pode ir comer alguma coisa até, eu pago, juro. Não precisa fazer essa cara de ódio não, Cê.
Ela colocou os pés para fora da cama e tocou o chão, calçou os chinelinhos pardos, vestiu um casaco meio amarelado. Os passinhos com pressa quase não tocavam o assoalho lustrado e polido, vermelho. Alcançou as chaves, tremula, o barulho espalhando-se pela casa inteira, abriu o trinco e girou a maçaneta. Como se disso dependesse o resto da vida e, e em um só movimento de cordas vocais, exasperou-se:

-FORA!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

o errado

Eu sempre estive fazendo as coisas erradas no tempo errado e na hora errada.
Escolhendo o ônibus errado, e depois olhando com desespero para fora, as mãos grudadas no vidro, o nariz, a cara, tudo querendo sair, esperando que da outra estação ele olhasse e corresse pro caminho certo.
Escolhia os cursos errados, transbordando de mulheres velhas e enfadonhas trocando receitas e maridos, enquanto terminava de assinar a matricula com desespero, assistindo penosamente ele marcar a outra bolinha e não a minha.
Fazia opção pelas pessoas erradas e sofria com o coração na mão e os olhos cheios de lágrimas enquanto sentava sozinha no parque com desespero assistindo a pessoa certa tão feliz com outra pessoa que não era, mas podia ter sido eu.
Chorava até nas horas erradas e depois ficava encolhida embaixo das cobertas assistindo algum programa desesperador, enquanto o dia lá fora estava tão bonito e ele até disse que me chamaria pra sair se eu não estivesse tão assim.
Ficava até nas rodas erradas, conversando desesperadamente qualquer coisa, quando ao mesmo tempo alguém que eu queria acabava de chegar na roda ao lado que eu havia acabado de descartar.
Falava as palavras erradas, e com o mesmo impulso de desespero tentava tampar a boca enquanto olhava pra ele fazendo aquela cara, e desejava com todas as forças simplesmente não ter falado nada.
E andava com as companhias erradas.
E assistia aos programas errados.
E escutava musicas errada.
Os filmes, os beijos, os lugares, as viagens, as famílias, os romances, os estudos, os negócios, as horas.
A vida.
Tudo tão errado.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

volta na quadra

O dia aconteceu cabisbaixo, cinza e molhado, exalando a preguiça humana relutante em deixar as respectivas casas. E ver um filme dentro das cobertas, e aninhar-se na cama hibernante e ter um amorzinho secreto atrás das portas fechadas, qualquer coisa do gênero. Pelo pouco tempo restante até o escurecer próximo da pálida luz, decidiu finalmente com todos os seu botões libertar-se da prisão apartamento. Pois se não há quintal, não há grama e nem tatuzinhos bola que se pode pegar na mão e fazê-los enrolar. E por si própria, naquele diminuto espaço, a vida já parece ter enfadado e precocemente começa a se esvanecer.

Levantou-se bruscamente da cadeira, abandonando a metade de um livro pela mesa e o caderninho de anotações. "Ele fitou com desgosto como se ela tivesse estragado tudo, a vida inteira." Riu-se o devolvendo a superfície de mármore. Os pezinhos brancos invadindo o chinelinho sujo. Pensou agora em abandonar essa idéia e limpar tudo, já que até seus chinelos acusam a demanda, e dormir depois no chão fresquinho enrolada em uma cobertinha, ah, tão bom. Porém o estomago ronca com tamanha tristeza que ela até agradece o fato de estar sozinha antes de entrar no banho.

Coloca o vestido preto, as meias pretas e as botas mais bonitas do mundo, coisa linda de doer.Custaram um absurdo, decerto um investimento, pensou orgulhosa. O couro tão macio como de uma foca bebê, e a costura finíssima de excelente qualidade e acabamento, não há sequer um fio solto, pode se ver.A sensação de conforto imensa como mergulhar os pés em gelatina, de amora.

Começou a destrancar a porta, receosa, enquanto ouvia os vizinhos incomodando pelas paredes delgadas. Não possuía um espelho grande o bastante para examinar a escolha de elementos e sentia o vestido preto excessivamente sóbrio destoando com o cabelo bagunçado e umedecido pelo vapor, e aquele corte que não favorecia nenhum dos dois, agora transmitia certo arrependimento. Sentiu-se insegura ao descer as escadas quando uma sensação de estrangulamento acentuava-se pelas coxas a medida que as meias pretas desciam enrolando traidoras. Mas as botas, ah! não podiam estender a oportunidade do desfile.

domingo, 28 de março de 2010

A declaração

Encontrei rota e esquecida uma carta escrita em papel amarelado muito judiado, o coitado do papel, que até me doeu no peito tirá-lo de seu esconderijo dessa forma tão intrusa, mas o que aconteceu e agora compartilhando, as cenas e palavras tornar-se-ão um tanto fantasiosas de maneira que a coisa toda pareça de verdade, ou de mentira.

Essa foi a introdução.

A mão feminina segurava tremula uma caneta e um pedaço de papel, retirado do fundo da penteadeira onde remanesciam juntamente alguns restos de maquiagem e amostras violadas de perfume. O deslizar da ponta seca na superfície áspera causava certo atrito a medida que a tinta se recusava a sair. A cor é trocada. Consegue-se ainda ouvir o objeto ingrato sendo lançado ao chão antes de ser substituído.

"Oi".

As bochechas assumem um tom róseo. Há uma pausa. O canto da boca é mordido violentamente pelos próprios dentes impacientes. O ar se solta, e as palavras continuam.

"Você não deve se lembrar de mim, mas eu estava lá"

"Não sei se você chegou a reparar em mim alguma vez". E uma lágrima umedece a pele trincada de frio, enquanto a letra torna-se cada vez mais ilegível. "Porque eu queria ter conseguido falar com você, mas me faltou coragem".

"Porque me falaram que eu deveria parar de ficar esperando que as coisas acontecessem e talvez devesse tentar fazer com que elas simplesmente aconteçam".

"Porque eu queria conseguir".

Nesse momento a tensão já tomou toda sua nuca, incomodando. Nunca pensou como era falha a altura da mesa até aquele momento em que a menina realmente sentia. E as entranhas cheias de borboletas. Abriu uma gavetinha de onde tirou uma foto 3x4, preto e branco, um tanto amassada e arrancada de algum lugar. Prendeu o ar, olhou para o teto até a vertigem chegar. A cadeira tombou. Um risco preto machucou a folha.

O papel enrugou todo com a umidade, contorcendo-se em desespero a fim de manter-se unido em uma ultima tentativa, quando a menina sem forças não queria mais saber dessa coisa de conseguir. Abriu a ultima gaveta da penteadeira, moveu alguns cartões e papéis amontoados, alcançou o fundo aonde se sentia a textura da madeira, e por fim sepultou o coitado.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Pupa

Encontrei a menina dos cabelos tão curtos como menino cujo amor que nós tínhamos agora era tão grande que podia ficar horas só sonhando em continuar atada a ela. Melhores amigas. Aquela amizade pura e nostálgica de jardim de infância, imutável. E lá estávamos as duas vestidas para alguma festa esquisita onde nem todo mundo entrava.E embora os trajes vulgares e a maquiagem demasiadamente carregada, podia de longe assistir a nossa inocência como duas crianças que apenas incharam de tamanho.

Éramos as pessoas certas, tão alegres, tão impregnadas daquela magia que a muito tempo se perde, porque não nos deixariam então? Estávamos de mãos juntas e pude lembrar o exato momento do separar dos dedos, agora olhando assim para ela tão desesperadamente não entendendo porque ela tinha de crescer de uma hora para outra enquanto eu continuava parada no mesmo lugar.

Passamos para a adolescência.Lá me ofereceram peças conceituais para desfilar, e ao revê-lo, todo taciturno sentado em um canto, numa fileira, com um amigo seu, alguma coisa de dentro me impeliu para fazer aquela papel ridículo, só para ele ver, só para ele me ver.

Deixei a menina sentada próxima e me empurraram para uma fila. Tentaram me colocar uma roupa fora de meu tamanho e resolvi sair daquele jeito mesmo, sem parte de cima. Afinal no momento eu ainda era criança sem saber que já era moça crescida. Um rubor tomou-me a face quando percebi a nudez a qual me submeti sem entender bem o porquê, enquanto olhava envergonhada para ele que se mantinha cabisbaixo com olhos embaçados.

Quando voltei para a minha amiga, ela estava toda encantada dizendo que havia recebido uma carta de amor. Que na mesma fileira, estava um moço muito bonito que queria conhecê-la. Meu mundo caiu. Meus olhos encheram-se e olhei para ele pela ultima vez com tamanho sofrimento que quando acordei, meu corpo todo ainda sentia. Mas e eu?

domingo, 14 de março de 2010

Reality Bites

Quando eu beirava meus quinze anos, talvez antes disso até, fiquei até de madrugada acesa para conseguir ver um filme curioso de 1994. É, admito que o motivo daquela coisa toda de me empenhar ao máximo para não fechar os olhos, ou ligar a tv bem silenciosamente para a Dona Mãe não aparecer sorrateiramente no meu quarto, pode ter sido o simples fato que o protagonista era muito bonito, sabe? Uma dessas coisas lindas de se ver. Alto, jovem, rebelde, ah! Rebeldia para mim sempre foi muito importante, essa coisa de ir contra o sistema, de fugir de casa, de aprontar alguma loucura, de fazer algo incrível por alguém, e nessa idade, cá entre nós a gente realmente é movido pelo superficial, pelo óbvio, não é? Em momento algum quis dizer que isso acabe dentro da gente no futuro, mas torna-se menos freqüente para algumas pessoas, ou assim eu pelo menos espero.

Era sobre um cara e uma garota que no fundo estavam apaixonados. E moravam juntos. Note que ao dizer no fundo, quero dizer que eles só ficam juntos no final, ou no quase fim e depois se separam e ficam juntos. Quero dizer que quando eles finalmente se enlaçam sob os lençóis, ele vai embora e a deixa sozinha, dizendo que decerto ele devia ter mais o que fazer. Como Kerouac disse outro dia desses "Os homens são tão malucos, querem a essência, a mulher é a essência, lá está ela bem na mão deles mas eles saem correndo construindo grandes estruturas abstratas.(...)em vez disso eles saem por aí correndo e ficam achando que a mulher é um premio e não um ser humano."

Naquela época, eu realmente era desprovida de todo e qualquer conhecimento dessas relações mais complexas, ou em outras palavras eu era assexuada (por mais um bom tempo), e aquela coisa toda me assustou/emocionou/abalou/traumatizou/não sei deveras. Aquela coisa de "meu bem, veja bem, foi só uma noite sei lá". Mas não era. Pra alguém nunca é, e já ouvia a mãe muito sábia e profética dizendo que um sempre sairia chorando no final da brincadeira.

Mas o que me espanta é lembrar dele assim segurando minha cintura enquanto eu assustada/emocionada/tremula/sem reação, me esforçava ao máximo para não fazer nenhum ruído estranho que o acordasse. Queria permanecer assim, a camisola de seda vermelha com seus braços ao redor, para sempre. E agora quando penso sobre o filme, me parece tão igual, a mesma coisa. A menina que ficou chorando no final da brincadeira e o cara que simplesmente foi embora porque afinal aquilo tudo foi tão esquisito e sei lá. E sabe-se lá. E agora quando me lembro do filme, concordo que naquela época nunca me passaria na cabeça que um dia aconteceria a mesma coisa comigo tanto tanto tempo depois.

E agora refletindo sobre o filme, e analisando seu título, penso que realmente tenha sido uma escolha um tanto incoerente, já que tinha um final feliz.

sábado, 6 de março de 2010

Família

-Que coisa horrível - cuspiu - Você não tem de se tornar assim, tão publica. E aonde vai a educação que te dei?
Ela estava encurralada em um canto, ajoelhada como se pedisse perdão por um pecado que não era seu. A boca ampla e aberta, molhada de lágrimas.
Quebrou a garrafa e continuou arrastando os pés pelos cômodos.
- Filha minha, filha minha não sai por aí achando que vai ser estrela. Não sai por aí se mostrando pra homem. Que coisa é essa? -Esbofeteou-a de mão cheia - E aparece essa hora!?
A menina se enfiava cada vez mais no canto, sem ter aonde se esconder. O sangue escorria pela face tingindo as roupas. Tentou argumentar, juro que tentou. Ele a levantou pelo braço com tamanha força que seus dedos já não tocavam mais o chão.
- E que roupa é essa? Filha minha não veio de açougue nenhum pra ficar mostrando a carne. O que sua mãe ia achar disso, Han!? Sua sem vergonha, sujando a família assim - seu rosto tomou uma expressão de asco, cuspiu na menina também - Imagina se sua mãe ve uma coisa dessas.
Largou o corpo que caiu pesadamente sobre o chão e os ossos se encolheram todos, trêmulos. O homem resmungava algumas palavras incompreensíveis enquanto seu olhar parecia perdido a procura de alguma coisa que não estava ali.
- E minha garrafa? Bandida! O que você fez com minha garrafa!? A gente cria nossos filhos, e olha a gratidão! - voltou-se para a menina agarrando-a pelo pescoço – Cadê!? - chacoalhando.
Lançou-a para longe e sentou-se à mesa, desabando a chorar. A menina fugiu para o quarto enquanto o homem permaneceu em seu sofrimento.
Na manhã seguinte encontrava-se adormecido no mesmo lugar. O movimento nas panelas o despertou.
- Ah, filhinha é você que está aí? - a voz afetuosa - Já tomou seu café? - levantando o rosto da mesa - Saiu ontem, foi para algum lugar?
- Não pai - respondeu a menina com o olhar baixo, a voz apagada, a ferida no canto da boca - Só acordei pra beber água quando o senhor chegou.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Sobre Mathilda

-Nossa... - suspirou dissolvendo o açúcar na xícara de café - Você já sentiu algo parecido com isso, Cê? Abaixou a cabeça, deixando algumas mechas do cabelo cobrir a face, os braços pesados desapegados sobre a mesa, as veias rígidas.
Será que é por causa do frio? Perguntei-me assoprando cuidadosamente o chá. Ele usava um casaco preto pesado até as canelas, e as mãos congelando na esperança do aconchego de uma fonte de calor. Mal pude expressar algum consolo quando me interrompeu.
- A primeira vez que vi Mathilda ela tinha seus cinco anos de idade - Sorriu brevemente - Ela estava trancafiada atrás de uma grande vidraça e me lembro de seus dedinhos rosáceos como borrachas aderidos ao vidro. Sua respiração embaçava a janela, mas aquele tipo de olhar, ah Cê, era daquele tipo que a gente nunca se esquece.

É esse o problema?- Me enalteci – vai me dizer que está por aí, todo amuado por causa de um garotinha?

- Não, Cê, Mathilda não é mais uma garotinha, isso foi coisa de muito tempo atrás.
Suas bochechas avermelharam, logo tomou um pouco mais de ar e recomeçou:
- A segunda vez que vi Mathilda ela já estava feita. A encontrei sentada em um banco de praça qualquer, aquele olhar, e os dedinhos rosados se escondendo dentro da blusa escura, só podia ser. Tinha umas olheiras enormes, a boca entreaberta, e o cabelo escuro e espesso fechando toda a cara. Não podia encostar nela, sabe? Alguma coisa simplesmente repelia, mas o que aconteceu foi que ao passar por ali na manhã seguinte ela ainda estava lá, da mesma forma.

Naquele momento vi seu olhar tão distante, que pensei que nunca o teria de volta, uma seriedade monstruosa tomou conta de sua face, mas que logo se expressou aveludada na continuidade das palavras.

- A terceira vez que vi Mathilda foi quando acordei depois de levá-la comigo para casa, ela estava sentada no sofá lendo um de meus livros, só de polainas. Segundo ela, faz muito frio nas canelas.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

garota ao palco

Aquela não passava de uma dessas noites ordinárias de sabádo ,e a chuva já pesava sofrega sobre expectativas passiveis a serem dilaceradas. O tipo de atmosfera úmida e abafada propicia ao mal estar, não lavava nem escondia, só deixavam corpos e animos amolecidos.
Quando o relógio indiciou cerca de 15 para as 22, uma garota foi deixada a porta do bar. No convite, o carimbo das 22 marcara em relevo a parte de trás do papel. Ela segurou-o penosamente. Não havia uma alma viva, mas esperou silenciosamente enquanto a chuva escorria sobre sua pele alva. Abriram a porta e a deixaram estar.
Não pediu uma bebida, não acendeu um cigarro, não colocou-se a falar. Caminhou para a frente do palco e esperou o show, a postura incomoda, as mãos atadas, a expressão em branco, o cabelo molhado fazendo coçar a cara.
Quando a musica começou, a garota não pode fazer nada além de fechar os olhos. E sentir.E pular. E dançar como se estivesse no seu próprio mundo, movimentando-se de maneira incoerente ao ritmo ou a suspeita da presença alheia. Seus membros se contorciam e sua cabeça girava ao ponto de partir o pescoço.
O som intensificava-se e a garota agora gritava e gania segurando o próprio corpo desgovernado. Alguém colocou a mão em seu ombro em uma tola tentativa, mas parecia perdida dentro daquele transe. Os olhos giravam brancos em suas órbitas e o cabelo pesado feria a própria pele.
Quando a coisa realmente desandou, a garota começou a exalar um odor hediondo e fluídos começaram a deixar sua carne, e por todo o lugar, espalharam-se devido sua agitação desenfreada. Quando conseguiram conte-la, embestiava uma força digna de possessão, a qual somente abandonou seu corpo quando a musica cessou, forçando-a expelir uma espuma esverdeada durante alguns minutos.
Quando os braços a libertaram, desfaleceu silenciosamente pelo chão, embebida pela chuva.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Não há vida

A manhã acordou branquinha de névoa, adentrando os cômodos no abrir das janelas, invasora. Os pés branquinhos tocaram descalços o chão resfriado, enquanto os ossos rangiam no esforço do levantar de um corpo. Mas se era tão leve? Diziam. E a abraçavam rodopiando, mantendo seus pezinhos frígidos afastados do chão. Um saco de ossos gelados - alguém disse, e com a mesma falta de sutileza na escolha das palavras, resmungou - foi como "foder" um saco de ossos, e gelado ainda por cima. Mas isso não impediu o esticar dos músculos espreguiçando, o bocejar, o trincar dos lábios rachados de frio e falta de cuidado. Precisa ser mais vaidosa, se cuidar um pouco mais, passar um esmalte, um batonzinho, que tal? Se o contraste não fosse tanto, ou tão vulgar, tão branco com vermelho - fico parecendo uma biscate - e fechou o sorriso embravecida. Vestiu as pantufas desbotadas, presente de um tempo que não se recorda mais, e arrastou os pés com grande dificuldade até a cozinha. Acendeu a luz da cozinha. Malditas luzes florescentes brancas demais. Pegou uma caneca, deslocou-a até a pia, onde foi preenchida de leite. Abriu a porta do microondas, cheirava pão quentinho com margarina do dia anterior, aspirou a essência toda e sorriu. Colocou a solução resultante de leite, achocolatado e café solúvel no seu interior e fechou a porta. Apertou o botão, e nada. Apertou qualquer outro botão, e nada. Pressionou todas as possibilidades imagináveis para obter somente um suspiro de existência, mas não havia vida.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A cadeira

"É muito embaraçoso pensar nisso uma segunda vez, coisa de avermelhar as bochechas, imagine descrever então. Realmente mantenho falsas esperanças de que antes de voce escutar o fato ocorrido, voce se ponha um pouquinho no meu lugar para talvez tentar evitar qualquer julgamento precipitado, pois esse é o mínimo exigido, o mínimo que eu te peço para poder compartilhar uma coisa destas.
Me lembro muito bem do dia que a vi pela primera vez, com um laço de veludo vermelho amarrado no pescoço, abraçando-a tão gentilmente. As curvas tão bem delineadas, e a pele de um couro branco dos mais finos. Acariciei-a gentilmente com o dorso de minha mão em um ato quase sexual. Senti seu corpo respondendo ao meu toque, e com um enorme sorriso de satisfação, suspirei.
Nosso primeiro contato não durou muito, apenas o suficiente para causar aquela reação que as pessoas costumam chamar de amor a primeira vista, uma certa classe de paixão misturada com a mais pura das idealizações. O carro deu partida mas meus olhos fixaram-se naquela magnífica obra de arte que aos poucos desaparecia de minha vista. Naquele dia a permaneceu em mim seu perfume e a exaltação de poder reencontra-la em breve.
Todo os dias nos encontravamos em silencio, a sensação que possuia meu corpo fazia com que me sentisse viva e ao mesmo tempo, no final de nossos encontros meu corpo mantinha-se estremecido de tanta sensibilade que ela despertava em mim. Era nova e demonstrava a sua juventude através de movimentos agudos, fortes e ao mesmo tempo tão delicados e sutis. A fricção de nossos corpos provocava meus sonhos mais profundos e a necessidade de tê-la comigo agravava-se a medida que a frequencia de nossos encontros aumentava.
No começo havia plena consciencia de minha parte do que fazíamos, e que não deveria estar certo. No entanto voce não faz idéia de como ela me enlouquecia, como tudo aquilo estava se transformando em um vício, no meu ópio, e eu precisava, sabe Cecília? Era tudo muito necessário para mim.
O que aconteceu depois de algum tempo é que descobriram. É, foi isso. Alguém deve ter contado tudo eu presumo, porque a ultima vez que a vi, um outro qualquer estava esfregando seu corpo com um certo óleo, quase que obscenamente."

Fechou a cara.
Mas e aí? - perguntei - O que aconteceu com voce depois?
Resmungou um tanto, inconformada - Bem, fui despedida da clinica, não é? O que mais poderia ter acontecido, hein Ci?