sábado, 29 de maio de 2010

Câncer de cachorra

Ele me perguntou se era nos peitos e o que pude fazer foi simplesmente confirmar acenando tragicamente a cabeça. Como ele sabia? Disse-me que geralmente é ali, pelo menos foi isso que escutou a mãe conversando no telefone um dia desses.

Havia um resquício de sangue seco nos fundilhos da minha roupinha íntima, ele acendeu o charuto, esboçou um sorriso interno, a cartola sombreando seus olhos, cada vez mais doente, hein querida? Deu um trago, o sorriso externou-se, começou a gargalhar. Eu permaneci sentada, a xícara de café amornando entre meus dedos, tentando enxergar com dificuldade enquanto o sol trepidava nos meus olhos, queimando.

Nega, era esse o nome dela, e isso eu não vou nem esconder. Tinha um pelo azulado lustroso que descia deslumbrante por toda sua arqueada coluna, e deitava-se com as patas dianteiras cruzadas elegantemente. Podia ficar horas admirando sua beleza crua, enquanto com aqueles belos olhos caramelos me observava submissa, as patas cruzadas. Meu pai me disse que quando elas faziam isso, eram naturalmente imunes a desenvolver algum câncer ou tumor. Seriam sempre saudáveis, viveriam plenamente.

Ele parou a conversa e apontou para mim, mas que elegância! Todos me olharam. Peguei-me sentada com as pernas cruzadas e os braços cruzados pousados delicadamente sobre a coxa. Lembrei.

Sua primeira filha não teve tanta sorte. Eu me perguntava o porquê que ela os carregava tão desajeitada pelas patinhas enquanto seus caninos branquíssimos rompiam a pele tenra de seus bebes. E os enchia de bicho, lambendo-os compulsivamente na tola esperança de tirar, os vermes. Uma bicheira danada comendo os nenéns por dentro, começando pelas patinhas esgarçadas. Eu segurava a pequenininha, a menor da ninhada, na tola esperança, enquanto todo o tempo ela chorava, os olhinhos azuis que mal conseguiam ver a luz atravessando aquela membrana tênue. Comprei um negócio prateado que mataria tudo. Cheguei e o bichinho estava duro estendido no chão, as perninhas rijas enquanto os vermes refestelavam na vitória. Minha mãe me abraçou bem forte. Não chorei.
Coloquei o mesmo nome em uma nascida da segunda ninhada. O tempo era bom, seco, não precisava ficar carregando eles por aí. Uma bola de pelos ela era, coisa mais linda de se ver, e a mãe sabia, precisava ser conquistada toda vez que eu me atrevia a mexer nos seus filhotes.

-Uma mulher como você, ele devia lamber o chão que você pisa- e todas essas coisas bacanas e encorajadoras que só uma mãe sabe dizer sobre o novo cara que ela decerto não aprova. Eu disse a ela que mordesse a língua, quando ele viu a calcinha ensangüentada e sentou-se no chão, os olhos transbordando em dor. Porque ele sabia, sabia e ficou, diferente de todos os outros que apenas suspeitaram e foram embora.

Nós crescemos juntas, quero dizer, eu e a cachorra. E seus filhotes a perseguiam famintos, os dentinhos afiados querendo mascar os mamilos leitosos. O leite empedrou. As mamas rijas, depois de umas três ninhadas interrompidas por doses cavalares de injeções preventivas. Prevenir o que? A vida. E eu me desesperava na vã tentativa de ensiná-la a cruzar as patas.

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