domingo, 24 de outubro de 2010

o vestido de noiva

O barulho da porcelana de ossos chinesa ressoando tímida no contato entre o pires e a xícara. Plin. Ele sempre com aquele olhar de incompreensão que me dói, o caderninho de notas à mão.
Eu juro que tentei me explicar da forma mais clara que me permiti.

Encontrei-o desmaiado atrás de um espelho. Você sabe como essas coisas mexem comigo, essa aura que as coisas abandonadas parecem emanar, uma saudade melancólica. Uma memória dolorosa. Eu não pude evitar me sentar ao lado dele, sobre o chão sujo e os objetos empoeirados. Era como se silenciosamente ele me chamasse choroso. Eu o desdobrei por inteiro. As pontas de meus dedos imediatamente deslizaram pelas rendas e bordados como uma caricia reconfortante. Eu o segurei delicadamente pelos ombros, era uma peça genuinamente maravilhosa. Contei as perolinhas que compunham o bordado, uma a uma. Os pequenos cristais que reluziam esplendorosos a luz do dia, a tanto tempo roubada. Eu o tomei em meu colo cuidadosamente para não magoá-lo mais do que o próprio esquecimento. Eu senti que precisava dele tanto quanto ele precisava de mim.
Dei a ele o melhor que pude. Um bom banho, um belo dia de sol. Sua trama tornou-se rapidamente de uma luminosidade ímpar. Imagine então minha felicidade ao descobrir que nos encaixávamos perfeitamente. Seus botões a beijar e cobrir gentilmente minhas costas alvas. Suas camadas de tule a roçar sutil em minhas pernas.
Eu só pude vesti-lo apenas uma vez. Fecho os olhos e me consome essa sensação de negligencia quando me lembro do vinho tinto a ser lançado sobre ele. Os adornos da renda contorcendo-se púrpuras, suas lágrimas alcoólicas. Eu tentei. Tentei por dias devolver a ele a pureza antiga que lhe maculei. Horas de preocupação e esforço que se resumiram em resultado algum. As pedrinhas se partindo à medida que minha tristeza o decompunha lentamente.
A única coisa que pude fazer foi continuar amando-o incondicionalmente, não pelo que ele era, mas pelo que ele não poderia mais ser. Deitava-o toda noite sobre meu leito e o abraçava pela cintura. Ambos dormíamos aconchegados, embalados pela brisa noturna. Fiz questão de que ele não se sentisse subestimado, sonhávamos todas as noites juntos e de manhã eu o recolhia. Com algum tempo ele começou a cheirar como meus lençóis, como o perfume que evaporava de minha pele, como os garotos que às vezes eu me deitava, com as bebidas que eu consumia quando me sentia demasiadamente sozinha. Com algum tempo ele era exatamente como eu.

Ainda dormimos juntos todos os dias, sua cintura fina se acomodando em meus braços, o cetim branco deslizando entre minhas coxas.

Ainda o recolho todas as manhãs, para que eu não o perca quando precisar de alguém para dormir comigo todas as noites.

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