terça-feira, 8 de junho de 2010

Porque livros e não pessoas

Sentou em uma cadeira de jatobá curvada a vapor, os tons achocolatados se misturando com a beleza dos veios que reluziam no acabamento, uma verdadeira obra de arte, coisa impar nesse reinado de MDFs e compensados, seus olhos sorriram.
Um carioca com canela, por favor. Porque um dia a menina que morava com ela disse que era abortivo. Quando você achar que a pílula não funcionou, só fazer um chá. Agora tinha um adesivo e dizia que era só ter força de vontade, como largar de um cigarro. Um pouco mais de determinação e a vida não se prende no seu útero, é verdade. Assoprou a xícara, as mãos feito conchinha se aquecendo no calor.
Deslizou os dedos magros para dentro da bolsa branca de pelica. Alcançou um livro com certa dificuldade no embaralhado da rotina que precisava ser carregada com dificuldade, e peso. A encadernação desgastada, as beiradas côncavas, as páginas adquirindo outra tonalidade, o cheiro impregnado nas folhas, a personalidade amadurecendo.
Quantas horas haviam se perdido na repetição de uma frase, ou página ou capítulo. Quantas vezes tornou a ler a peça com a mesma empolgação a qual desembrulhava um romance inédito, e não se fatigava. Cada trecho relido revelava um novo segredo, uma descoberta extraordinária, uma interpretação alternativa.
Conforme se desenvolvia, era como se os livros acompanhassem seu crescimento, transfigurando-se, mudando de tom, de humor, de sensibilidade. E ao mesmo tempo eram tão constantes, imensamente equilibrados. Sabia que no fim Catherine sempre amaria Heathcliff e isso não haveria de mudar. Talvez os gestos, a intensidade, as entonações, mas o resto assegurava-lhe uma tremenda segurança.

Olhou impaciente no relógio. Fechou a conta. Suspirou desconsolada. Abandonou o recinto.

Um comentário:

  1. é, sempre tenho novas leituras relendo determinadas peças incrivelmente maravilhosas. A vida se aborta e se renova, se aborta e se renova... mas nunca morre!

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